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segunda-feira

Em busca da Política 

Marco Aurélio Weissheimer
O livro “Em busca da política” (Jorge Zahar Editor), do sociólogo polonês Zigmunt Bauman, deveria ser lido por todos aqueles que estão preocupados com os rumos da política no Brasil e no mundo. Nos últimos anos, diversas pesquisas realizadas em vários cantos do planeta registraram um crescente descrédito da população em relação à política e aos políticos de um modo geral. Prospera uma visão que coloca a classe política e a atividade política em uma esfera de desconfiança e perda de legitimidade. A tentação de jogar todos os partidos em uma mesma vala comum de oportunistas e aproveitadores representa um perigo para a sobrevivência da própria idéia de democracia. O que explica esse fenômeno que se reproduz em vários países? A política e os políticos estão, de fato, fadados a mergulhar em um poço sem fundo de desconfiança? Essa desconfiança deve-se unicamente ao comportamento dos políticos ou há outros fatores que explicam seu crescimento?
Na introdução de seu livro, Bauman analisa algumas crenças contraditórias que perpassam boa parte da sociedade ocidental hoje. Lembrando que as crenças não precisam ser coerentes para que acreditemos nela, ele destaca duas delas para tentar lançar uma nova luz sobre a perda de legitimidade que atinge crescentemente a ação política. A primeira consiste em afirmar que a questão da liberdade está resolvida no mundo ocidental e que não há mais necessidade de ir para as ruas protestar e exigir uma liberdade maior do que a experimentamos hoje. A segunda é pensar que, considerando a atual configuração política e econômica do mundo, pouco podemos mudar e, portanto, devemos nos contentar com as coisas mais ou menos do modo que elas estão. “Como cultivar essas duas crenças ao mesmo tempo é um mistério para qualquer pessoa treinada no raciocínio lógico”, assinala Bauman.
Liberdade individual e impotência coletiva
Afinal de contas, acrescenta o sociólogo, “se a liberdade foi conquistada, como explicar que entre os louros da vitória não esteja a capacidade humana de imaginar um mundo melhor e de fazer algo para concretizá-lo?”. “E que liberdade é essa que desestimula a imaginação e tolera a impotência das pessoas livres em questões que dizem respeito a todos?”. O livro de Bauman pretende investigar por que essas duas crenças contraditórias convivem hoje, compondo uma espécie de pensamento hegemônico na sociedade. A conclusão que vai extrair, no curso desta investigação é que “o aumento da liberdade individual pode coincidir com o aumento da impotência coletiva na medida em que as pontes entre a vida pública e privada são destruídas ou, para começar, nem foram construídas”. Além da ausência ou da destruição dessas pontes, um outro fator contribui, segundo ele, para o desencantamento com a política, a saber, a ausência de tradução entre as esferas pública e privada.
Não é muito difícil detectar esses fenômenos na sociedade brasileira. O sentimento de impotência coletiva, a idéia de que certos problemas não têm solução e que o negócio é cada um cuidar da sua vida, o afastamento entre as esferas pública e privada. O debate sobre a corrupção é emblemático neste sentido e não é nenhum exagero afirmar que o modo como os meios de comunicação abordam o problema tende a reforçar esses sentimentos. O senso comum olha a atual paisagem política como quem olha para uma floresta onde todas as árvores são iguais. Mais grave ainda: essas árvores teriam um comportamento parasitário, cada uma procurando acumular vantagens individuais sem se preocupar com o bem-estar coletivo da floresta. Obviamente, reconhecer a força dessas percepções no conjunto da sociedade implica admitir a existência de evidências na sua direção. O fisiologismo político, as práticas do toma-lá-dá-cá, a falta de coerência entre o dizer e o fazer, estão aí a povoar todos os dias os noticiários.
Explosões espetaculares e a impotência dos políticos
Neste cenário, diz ainda Bauman, as angústias coletivas tendem a se manifestar apenas em alguns momentos particulares, sob a forma do que chama de “explosões espetaculares”. Essas explosões podem se manifestar na forma de festivais de compaixão e caridade, como ocorre freqüentemente com grandes campanhas assistencialistas promovidas por grandes meios de comunicação, capazes de mobilizar virtualmente milhões de pessoas. E ocorrem também sob a forma de agressão acumulada contra um inimigo público recém-descoberto. Essa última forma é particularmente identificável no debate sobre a corrupção. Alguns personagens são identificados como os vilões da pátria, vestidos como grandes ratos (como fez recentemente a revista Veja) e transformados em alvos para uma catarse coletiva. O problema com essas explosões espetaculares, adverte o sociólogo, é que “elas perdem força rapidamente; assim que voltamos às questões rotineiras do nosso dia-a-dia, as coisas também retornam, inalteradas, ao ponto inicial”.
O que fazer, diante disso? Bauman aponta um caminho e um grave problema para percorrê-lo. O caminho: “a chance para mudar isso depende da “ágora” – esse espaço nem privado nem público, porém mais precisamente público e privado ao mesmo tempo”. Um espaço, segundo ele, onde os problemas particulares se encontram não apenas para extrair prazeres narcisistas ou buscar alguma terapia através da exibição pública. O problema: esse tipo de espaço está deixando de existir. Poderosas forças econômicas, aponta, “conspiram com a apatia política para recusar alvarás de construção para novos espaços". Para falar de um dos fenômenos relacionados a esse processo de privatização da “ágora”, Bauman lembra uma afirmação de Cornelius Castoriadis, feita em 1996. Para Castoriadis, o aspecto mais notável da política contemporânea é sua insignificância. “Os políticos”, disse, “são impotentes...Já não têm programa, seu objetivo é manter-se no cargo”.
O elogio do conformismo
Essa opinião encontra eco no cenário político dos últimos anos, onde a esmagadora maioria das mudanças de governo não implica grandes diferenças. O liberalismo, nota Bauman, reduziu-se ao “mero credo de que não há alternativa”, que toda e qualquer alternativa são piores se experimentadas na prática. E a esquerda vem se curvando progressivamente a esse credo. Qual o resultado? O elogio e a promoção do conformismo em larga escala, responde o sociólogo. A capacidade dos indivíduos de traçar, individual e coletivamente, seus limites foi praticamente perdida, acrescenta. Tudo se passa como se não houvesse lugar para cidadania fora do consumismo e do individualismo, do cada-um-por-si. Bauman é duro neste diagnóstico: “é só nessa forma que os mercados financeiros e mercantil toleram a cidadania. E é essa forma que os governos do dia promovem e cultivam. A única grande narrativa que restou nesse campo é (para citar de novo Castoriadis) a da acumulação de lixo e mais lixo”.
Tudo isso tem um preço, adverte Bauman: “o preço é pago na moeda em que é pago geralmente o preço da má política – o do sofrimento humano”. Esse sofrimento se expressa na forma da incerteza quanto ao futuro, da insegurança crescente e da falta de garantia de direitos. E o que é mais dramático, acrescenta, é que a natureza desses problemas causa sérios obstáculos a ações coletivas, pois o medo, a insegurança e a incerteza fazem com que as pessoas não se mostrem dispostas a correr os riscos que as ações coletivas implicam, o maior deles, a falta de garantias de que vai dar certo. Assim, gera-se um ciclo vicioso: a insegurança gera mais insegurança e um progressivo encerramento dos indivíduos em torno de si mesmos. As instituições políticas passam a ser vistas como instâncias de pouca ajuda para suas vidas. A segurança torna-se uma obsessão, alimentando a desconfiança entre as pessoas e a desilusão destas para com as instituições.
A banalidade e a rotina, os melhores amigos do mal
É mais fácil falar do que fazer, tecer diagnósticos do que apresentar soluções, admite Bauman. Mesmo assim, ele aponta um caminho, mais uma vez citando Castoriadis: o problema com a nossa civilização é que ela parou de se questionar. “Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar ou deixa que essa arte caia em desuso pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem”, resume. E o caminho para reverter esse quadro, propõe, passa necessariamente pela ação coletiva, pela política com “P” maiúsculo. O ponto central de seu livro é que “a liberdade individual só pode ser produto do trabalho coletivo, só pode ser assegurada e garantida coletivamente”. Neste momento, estamos caminhando exatamente no sentido contrário, ou seja, no caminho da privatização dos meios de assegurar algo que possamos chamar de liberdade individual. “Se isso é uma terapia para os males atuais, é um tratamento fadado a produzir doenças iatrogênicas dos tipos mais sinistros e atrozes (destacando-se a pobreza em massa, a superfluidade social e o medo ambiente)”.
Estamos caminhando rapidamente nesta direção, com a cumplicidade escandalosa da maioria dos políticos, dos meios de comunicação e de uma boa parcela da intelectualidade. A qualidade constrangedora do debate político atual, a superficialidade, a banalidade, o culto às fofocas e às picuinhas e o sensacionalismo que caracteriza a cobertura midiática deste debate só contribui para acelerar a velocidade dessa disparada ladeira abaixo. O melhor amigo do mal, lembra Bauman, é justamente a banalidade. E a banalidade tem a rotina, o conformismo e a resignação como aliados estratégicos. A advertência de Bauman pode ser reforçada com uma passagem de outro livro, “O fim da utopia” (Ed. Record), do historiador Russell Jacoby. Ao analisar o desânimo e a dissimulação intelectual, “que finge que cada passo para trás ou para o lado significa dez passos à frente”, Jacoby lembra uma carta que o poeta inglês Samuel Coleridge escreveu a seu amigo William Wordsworth, em 1799, pedindo que ele escrevesse algo que contestasse o mal-estar e a resignação que se generalizavam na época. O sentido das palavras de Coleridge continua ecoando em nossos ouvidos, de modo provocador:
”Gostaria que escrevesse um poema, em versos brancos, dirigidos àqueles que, em
conseqüência do total fracasso da Revolução Francesa, desistiram de toda esperança de aperfeiçoamento da humanidade e estão afundando num egoísmo quase epicurista, disfarçando-o sob as aparências cômodas do apego ao que é nosso e do desprezo ao visionarismo dos filósofos”.
Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com)

Humor 


sexta-feira

América Latina: um cenário de possibilidades 



Erick da Silva

Hoje, à um cenário político na América Latina que nos permite apontar para caminhos que nos levam a uma superação do neoliberalismo e a um forte impasse aos interesses imperialistas norte-americanos de criar uma Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).
Este cenário que vem se acumulando já a um bom tempo e que passa pelo processo do Fórum Social Mundial, por uma série de vitórias eleitorais de contestação ao modelo neoliberal como no Brasil, Argentina, Venezuela e mais recentemente no Uruguai; se soma ainda a um rico processo, ainda que desigual, de mobilizações e reorganização dos movimentos populares na América do Sul e em parte da América Central. Compõem um novo quadro que aponta para promissoras possibilidades.
E que, diante dos processos desencadeados em diversos países, são significativos para comprovar a materialização do crescimento da consciência anti-imperialista. Ações que buscam canalizar este processo estão em curso. Como o IV Encontro Hemisférico de Luta contra a ALCA, realizado em Cuba e que contou com uma série de representantes de movimentos sociais do continente. Esta iniciativa promoverá uma campanha continental contra a ALCA.
Este encontro ocorreu no mesmo período em que os governos de Cuba e Venezuela lançaram a ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas). Que visa ser um contraponto ao projeto imperialista de dominação dos Estados Unidos na região que se materializa na ALCA. A ALCA, aliás, encontra-se num forte impasse, que estabeleceu-se a partir da dificuldade dos países em negociar sob fortes pressões populares, e que tendem apenas a se ampliar.
Isto demonstra a saída de um período defensivo e de retrocesso, e apontam para a possibilidade concreta de construção de um novo modelo de desenvolvimento soberano e auto-sustentável que tenha no protagonismo popular a sua tônicas principal. Não há garantias de êxito, mas que deve ser feita a disputa, isto, não resta dúvidas.

Erick da Silva é estudante de história

quinta-feira

A reforma política necessária 


Erick da Silva

Há um bom tempo que o sistema político brasileiro passa por um grande descrédito junto a amplos setores da população. As causas que levam a este descrédito são as mais váriadas, vão desde a própria maneira como está constituído o sistema polítco-eleitoral brasileiro, passando pelos inúmeros casos de corrupção.
A fragilidade dos partidos políticos no Brasil, e a desmoralização do Poder Legislativo são outros sintomas negativos que colaboram para a carência de legitimidade política atual. Isto não ocorre por acaso, o voto nominal, o descaso com que os representantes eleitos tem para os seus eleitores, as promessas falaciosas de campanha, a ação do poder econômico nas campanhas em detrimento ao debate programático e o "troca-troca" de partidos são alguns dos fatores que levam a um enfraquecimento dos partidos no Brasil.
É com este cenário que se apresenta a necessidade cada vez maior de uma reforma no sistema político. Para que esta reforma venha a de fato avançar para a superação destes problemas colocados, ela deve vir a atender a uma superação do atual modelo, extremamente falho e hierarquizado. Algumas mudanças devem urgentemente ocorrer; como a fidelidade partidária, pondo um fim as mudanças fisiológicas que inúmera vezes ocorrem; o fim do voto nominal e a implementação da votação por lista partidária preordenadas, o que despersonalizaria o voto e fortaleceria os partidos, dando maior força para o debate político e não mais para a "popularidade" ou ao poder econômico que muitas vezes definem uma eleição, tendo assim uma maior representatividade.
Nesta questão do poder econômico, outra mudança importante seria a implantação do financiamento público de campanha, o que daria uma maior igualdade de condição na disputa eleitoral entre os partidos, frearia a ação dos "lobbystas" que, em troca do apoio financeiro a alguns candidatos acabam por fazer prevalecer os seus interesses em detrimento ao conjunto da população, como ocorre inúmeras vezes. Estas e outras mudanças só se realizarão se houver uma mobilização da sociedade para exigir que ocorra a reforma política.
Somente com a reforma política poderemos ter uma democracia que aponte para um verdadeiro sentido republicano no país. Do contrário, continuaremos a ter um rascunho de democracia a afetar a vida de todos nós.

terça-feira

Perspectivas do Projeto Nacional 


Juarez Guimarães



Hoje a imaginação do Brasil criada pelo governo Lula vive um impasse republicano. Responder ao impasse da financeirização e à construção pública de uma ética política republicana significa alargar no PT e no governo os espaços de diálogo entre a esquerda e o centro histórico do partido.

Abordaremos o tema “O governo Lula, o impasse republicano e a esperança dos brasileiros" a partir de três teses encadeadas. A primeira tese procura exatamente captar uma novidade decisiva da conjuntura política do terceiro ano do governo Lula. Não há como falar das perspectivas do projeto nacional sem partir do presente e do futuro do governo Lula. A novidade é que a oposição liberal-conservadora, após ter recuperado identidade e presença decisiva nas eleições municipais de 2004, alcançou já um grau de presença pública, capacidade de articulação e iniciativa política que a tornam capaz de disputar a agenda e o futuro do país com o governo. A derrota na eleição da presidência da Câmara de Deputados foi, neste sentido, um divisor de águas. Há hoje um claro impasse instalado do movimento político ascendente que levou Lula à presidência do país.




Este impasse foi se formando, tornou-se central e pode se tornar fatal para as perspectivas do governo Lula, a partir da aliança cruzada entre a forte oposição liberal-conservadora e a ação de bloqueio de avanços possíveis, de esterilização de forças sociais transformadoras e de confusão identitária exercida pelas posições liberais dentro do próprio governo Lula.

O que torna vulnerável a posição do governo Lula e fortalece a oposição liberal-conservadora são principalmente duas dimensões combinadas: o modo como o governo responde ao principal problema deixado pelo governos Fernando Henrique – a dívida pública, em particular a sua dimensão financeira – e uma carência dramática de identidade ético-política republicana.

Arbitrar o conflito crucial de interesses entre o sistema financeiro e os rentistas, de um lado, e a esmagadora maioria da população brasileira, de sua consciência democrática, de outro, tão brutalmente a favor dos primeiros, dos banqueiros e rentistas, como vem sendo feito, é anti-republicano porque trabalha com uma ordem assimétrica de direitos e deveres. Isto é, os já mais privilegiados são exatamente os que mais lucram com a forma como o governo gere a dívida pública. Esta atitude não pode mais ser justitificada por um constrangimento inicial de governo. É uma opção política que, ao ser defendida, legitima o que é publicamente injustificável perante a consciência democrática do país.

Conflitos podem e devem ser arbitrados por um governo. Mas um governo não pode arbitrar sua imagem pública, dissolver a sua identidade em valores contraditórios. A ausência deste princípio básico de comunicação – a nitidez da imagem - torna-se dramática quando exposta à sanha da mídia liberal-conservadora. A imagem de um governo semi-ético ou semi-republicano, ou não plenamente ético ou não plenamente republicano, resvala para a sua falta perante a opinião pública. Ela distancia o governo Lula da fome de republicanismo dos brasileiros. Criam uma barreira entre o governo Lula e o que há de mais avançado na sociedade democrática brasileira.

A estratégia de arbitrar os conflitos da sociedade brasileira, a partir de dentro do governo, não funciona mais como padrão de governabilidade quando estes conflitos, à diferença dos dois primeiros anos de governo, já alcançaram a condição centralizadora da agenda pública do país sob a dinâmica governo-oposição. O governo não tem mais o espaço para exaurir suas energias e a própria identidade nos conflitos internos. Essa, aliás, foi a grande lição da sua principal derrota legislativa.

Neste contexto de uma aliança cruzada entre a forte oposição liberal-conservadora e as posições liberais dentro do governo Lula , pode-se criar – e ,de modo inicial , já estamos vivendo esta perigosa dinâmica – um complexo de rejeição+ anomia: somos asperamente atacados pelas forças liberais conservadoras mas não criamos as condições para sermos defendidos com entusiasmo pelas forças democráticas e populares.

Esta afirmação é exagerada ou unilateral? O governo Lula é, na verdade, muito melhor do que parece. Parece pior do que é não apenas porque em geral a mídia omite seus efeitos e magnífica seus defeitos. Mas porque, hoje, se atentarmos bem, as conquistas mais importantes do governo têm o seu próprio contraditório, parecem neutralizadas ou ameaçadas pela ultra-conservadora política de gestão do Ministério da Fazenda e do Banco central. : o crescimento e a geração massiva de empregos, os efeitos distributivos do Fome Zero, a promissora combinação da reforma agrária e da agricultura familiar, a auspiciosa reforma universitária e a criação da Fundeb, uma política mais vigorosa de recuperação do salário-mínimo e assim por diante. É o próprio governo quem fornece à oposição liberal os antídotos, a contrafação, ao reconhecimento público de seus méritos.

O que este diagnóstico indica para esta fase final de governo, sob o risco de sermos derrotados, é que a transição deve avançar decisivamente, em atos governativos e simbólicos, em identidade e dinâmicas claras de superação do paradigma liberal. Mas quem pode liderar este processo de criação de legitimidade política para avanços senão o próprio PT?

Um liberalismo petista?
A segunda tese que gostaríamos de defender aqui é que a clarificação, de um ponto de vista de uma coerência republicana, do programa do PT para o país é condição necessária para começar a sair do impasse antes analisado.

Há certa legitimidade na representação de posições liberais dentro do governo Lula, em uma lógica de transição e em posições não dominantes, porque esta representação atualiza para o sistema de decisões do governo os condicionantes políticos e objetivos adversos à mudança. Mas seria desfigurar e cindir a cultura petista levar a pactação com posições liberais à categoria de programa partidário. Em uma lógica de transição, o governo deve arbitrar conflitos crescentemente na direção de suas metas. O PT, nesta dinâmica, deve cumprir o papel de atrator público da transição, das suas metas, de criador da legitimidade de seus avanços tornados possíveis. Se ele também arbitra suas posições com o liberalismo e desvanece sua identidade republicana, o principal partido do país e líder da coalizão perde esta condição de atrator da transição.

Queremos dialogar, neste momento, com a versão inicial, portanto, a ser reformulada e desenvolvida, do campo majoritário expressas no documento “ Bases para um projeto do Brasil”. Este documento pretende, como afirma, “orientado pelos princípios e valores do PT , refletir e incorporar as principais lições que podem ser extraídas da experiência maior de governar o Brasil nos dois primeiros anos do governo Lula e resgatar e atualizar os nossos objetivos estratégicos. ”

Há, pelo menos, cinco dimensões importantes nas quais este documento se distancia criticamente das posições liberais. São eles:

- A fixação do tema do desenvolvimento como problemática central, retirando os termos do debate da fórmula neoliberal de “retomada do crescimento com manutenção da estabilidade”. A definição da problemática do desenvolvimento como central é fundamental para a superação do paradigma neoliberal.

- A construção da noção básica e estruturante de um “novo padrão de desenvolvimento” em que o tema do crescimento aparece conectado com a diminuição da pobreza e o ataque frontal às desigualdade de renda e regionais, além da construção da soberania do país. Defende-se em várias passagens que a superação das desigualdades é condição para o desenvolvimento sustentado.

- A crítica que aparece em várias passagens aos padrões de gestão da economia e do Estado que prevaleceram nos anos noventa.

- A defesa da continuidade das referências ao socialismo petista agora conjugado com a noção de que o papel histórico do PT é dirigir a construção de nossa república imperfeita. Isto está perfeitamente dentro da lógica do documento histórico “ Socialismo petista” quando relaciona socialismo democrático com as tradições brasileiras.

- A defesa vigorosa da ética vinculada à reforma política como momento de identidade do partido e do governo.

Esta intenção de criar um novo projeto para o país a partir dos valores petistas é, no entanto, contraditada, em suas conseqüências, silenciadas em questões chaves e tornada ambígua em várias conclusões, pelo caráter constitutivo do documento de ser a mediação possível, a arbitragem negociada, entre posições republicanas e liberais no campo majoritário do PT. Em várias passagens importantes, o documento, em sua versão inicial, está neste sentido aquém mesmo de práticas e conquistas do governo Lula.

Esta contradição aparece nitidamente em seis questões decisivas. Em primeiro lugar, a defesa acrítica e, portanto, segundo os valores liberais correntes, da estabilidade fiscal. Ora, o PT aqui deve assumir claramente uma atitude ofensiva e crítica à noção de “equilíbrio fiscal” tal como formulada pelos neoliberais ou FMI. Não será aceitando autocriticamente as lições de Malan que conquistaremos crescimento com estabilidade. Keynesianos, neokeynesianos, schumpeterianos, socialistas de diversos matizes, ou mesmo pessoas de bom senso, postulam conceitos contrastantes de equilíbrio fiscal. Há consenso que se deva trabalhar unilateralmente com a noção de superávit primário e deixar irresponsavelmente as dívidas financeiras se expandirem sem controle? Investimentos de estatais ou títulos da dívida agrária são gastos contábeis correntes? Dívidas privadas podem ser renegociadas, com o aval do Estado, mas dívidas públicas em hipótese nenhuma? Pagamentos de dívidas financeiras, corrigidas a taxas de juros escandalosos, devem sempre receber prioridade mesmo em prejuízo de gastos sociais que salvam vidas? O mesmo se pode afirmar em relação à estabilidade dos preços. É decisivo manter a inflação sob controle. Mas só monetaristas dogmáticos e selvagens têm o remédio único e infalível contra a inflação, custe o que custar? Ao legitimar e reiterar a defesa da prática de juros absurdos, não estaríamos também legitimando a versão mais conservadora do liberalismo econômico?

Em segundo lugar, há no documento a ausência de uma defesa clara e sistemática dos direitos do trabalho; da reforma agrária como projeto estruturante de um novo desenvolvimento. Em quarto lugar, a posição acomodatícia diante da financeirização. Em quinto, a ausência de um tratamento sistemático da democracia participativa.

Porém, o item mais sintomático desta contradição do documento é o 39, quando fala da função do Estado, tomando equidistância do nacional-desenvolvimentismo e do neoliberalismo. Há aí um grave erro de análise histórica: a aceitação do ponto de vista liberal que toma como nacional-desenvolvimentista a segunda metade dos anos sessenta e os anos setenta, do regime militar, para desqualificá-lo. E outro que fere a própria natureza republicana do nosso projeto: o PT deveria se situar como antagonista do projeto neoliberal e como propositor de uma superação critica do nacional-desenvolvimentismo, que tinha uma noção básica de desenvolvimento.

O público e a imaginação do Brasil
Em sua obra de memórias, Celso Furtado chamou de “ A fantasia organizada” o volume que trata do auge das políticas públicas no período nacional-desenvolvimentista. Aquele que foi formado na cultura do positivismo, com sua apologia da ciência e da racionalidade, ao longo dos anos foi valorizando as noções de vontade política e imaginação social para a superação do subdesenvolvimento.

Qual é hoje a imaginação petista do Brasil?

A célula da imaginação liberal – não a falácia do “mercado livre”, mas este ativamente regulado para os benefícios do capital e ativamente desregulado contra os direitos do trabalho – era, ao mesmo tempo, uma resposta à crise do Estado brasileiro. Qual pode ser a célula da imaginação petista senão o público,formado por três setores: o Estado democratizado e sob controle social ; a rede ampliada de políticas públicas que se interage com os associativismos políticos, sociais, econômicos e culturais do povo brasileiro; a regulação forte e ativa, de sentido universalista, do mercantil privatista?

Mas o público não está plenamente formado na democracia brasileira. É descontínuo, fragmentado e parcial. É assolado permanentemente pelo fantasma da corrupção sistêmica. Demanda, pois, um ethos de formação e uma inédita mobilização de vontade. Requer obstinada luta contra os valores mercantis privatistas e patrimonialistas. Reclama ampla inovação institucional, alargamento e aprofundamento das regras democráticas e participativas,.

É por isso que a ética na política é tão fundamental para nós: sem ela, é a nossa ferramenta para mudar o Brasil – o público – que cai em descrédito. Para os neoliberais, não, porque a desmoralização do público é apenas o reverso da sua apologia do privado mercantil.

Com esta ferramenta do público seria possível retomar causas republicanas fundamentais e dar a elas respostas criativas e contemporâneas que não eram possíveis no período nacional-desenvolvimentista por razões históricas, por limitações estruturais ou programáticas.

Hoje, é possível projetar um ideal de soberania política no quadro de uma integração ampla e plena, não apenas econômica, da América Latina. Antes, não era, a América Latina estava cindida pela cultura da guerra fria. Com os entes financeiros públicos, o BNDES, o BB e a CEF, e mais os fundos de pensão, com a estrita regulação das funções creditícias do setor bancário privado, é possível formular uma resposta estrutural ao problema crônico do financiamento do desenvolvimento brasileiro. Esta possibilidade era apenas entrevista no pré-64. Com o desenvolvimento de ilhas de excelência em tecnologia avançada, como a Petrobrás,na fabricação de aviões, em biotecnologia, e com o circuito universitário público brasileiro é possível hoje constituir um Sistema Nacional de Inovação. No período do nacional-desenvolvimentismo, a nossa base tecnológica era precária e inicial e a universidade pública brasileira não tinha formado o seu moderno sistema de pós-graduação.

Com as conquistas do SUS, da extensão da Previdência pública, da rede pública de ensino seria possível retomar a construção de um Estado do Bem Estar Social em um contexto de diminuição do desemprego e de formalização do mercado de trabalho. Superado o paradigma urbano-industrial , típico do nacional-desenvolvimentismo, seria possível pensar uma reforma do agrário brasileiro que introduzisse elementos básicos de desconcentração populacional, empregabilidade e sustentabilidade ecológica.

A elevação dos cinqüenta milhões de brasileiros, hoje situados abaixo da linha de pobreza, à condição de cidadãos plenos, possível no horizonte histórico imediato significaria, além de uma enorme incorporação produtiva, a pacificação dos surtos de violência que hoje assolam as promessas de felicidade contidas na civilização brasileira. A ampliação qualitativa dos espaços públicos de interação do Estado com o associativismo e as formas de economia solidária, hoje tão fortes e disseminados no Brasil, poderiam elevar os padrões, importantes mas ainda imperfeitos, da democracia brasileira. A incorporação massiva das mulheres no mercado de trabalho ocorrida a partir da década de setenta e no sistema educacional – hoje já são maioria no público universitário – permite pintar de lilás os sonhos de emancipação dos brasileiros. A democratização de nossa vida social tornaria vulneráveis à fraternidade as células resistentes da nossa herança escravista.

Os sintomas da angústia, da decepção, da desesperança já estão entre nós. Seria inútil e perigoso desprezá-los. Mas seria carecer de sentido histórico não identificar que o governo Lula, em seu terceiro ano de governo, já desencadeou dinâmicas inéditas e amplas que, se aprofundadas, tendem a esta imaginação republicana. O governo cuja grandeza e coragem foi capaz, desde o início, de enfrentar os poderes no mundo, na defesa da democracia na Venezuela, nas negociações da Alca, na OMC, na disputa de uma agenda mundial pela paz e pela superação da fome, alternativa ao Império, precisa exercer sua capacidade histórica de submeter os privilégios escandalosos dos poderes financeiros à soberania da democracia brasileira e às necessidades do desenvolvimento nacional.

Não se trata de reeditar aqui o “pessimismo da razão e o otimismo da vontade” para encerrar com chave de ouro um juízo crítico. Mas de professar uma razão dramaticamente otimista, isto é, reconhecer que há, no próprio diagnóstico, em nós, na nossa história, capacidade e grandeza ético-política para superar as dificuldades postas pelo situação.

Esta é a terceira tese que procuramos demonstrar. Toda esperança requer uma imaginação própria. Hoje a imaginação do Brasil criada pelo governo Lula vive um impasse republicano. Responder a estes dois desafios – o impasse da financeirização e da construção pública de uma ética política republicana - significa alargar no PT e no governo os espaços de diálogo e convergência entre a chamada esquerda partidária e o chamado centro histórico do partido. É um chamado forte pela unidade dos petistas. Ao mesmo tempo, permite ampliar as zonas de colaboração do governo e do PT com a intelectualidade democrática, a Igreja popular e os movimentos sociais do país. Significa colocar em seu devido lugar histórico – o de ser porta-voz do anti-republicanismo, do atraso e de privilégios – a oposição liberal-conservadora. Significa, sobretudo, sintonizar o governo Lula com a força vitoriosa em outubro de 2002, a irresistível esperança dos brasileiros.

Juarez Guimarães é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

segunda-feira

Humor



sábado

Entrevista com Leonardo Boff


Se existe um desafio essencial do ser humano na atual etapa histórica, é salvar a "casa comum", ou seja a Terra. Isso significa, implicitamente, liberar o homem de um sistema que "paradoxalmente, e isto é novo, criou todos os mecanismos para sua autodestruição". Assim o define com a simplicidade de pedagogo e a clareza de um militante, o teólogo brasileiro Leonardo Boff, nesta entrevista exclusiva, onde o presente e o futuro do altermundismo não ficam de fora.




Cada vez mais o planeta se vê confrontado a uma polarização crescente, quase sem retorno...

Dá a impressão que as forças dominantes nos levam a um caos sistêmico. O grave é que o sistema desenvolveu o princípio da autodestruição. Isso não existia na humanidade.

O que dizer sobre as guerras ... ou é algo mais amplo?

Há os que, sobe a hegemonia da potência militarista dominante, querem desenvolver uma guerra infinita e para isto montaram uma máquina da morte. Mas são covardes, porque o fazem contra os fracos como o Iraque ou o Afeganistão. Não podem fazer contra a China ou a Rússia porque isso sim seria o fim próximo da humanidade. A continuar o terror econômico, que é a exploração mundial dos recursos da terra - dos países periféricos que são a maioria- vamos irremediavelmente para uma grande crise do sistema. Este não consegue hoje sua hegemonia por meio da persuasão e dos argumentos. E, por isso, tem que usar a violência, militar, política, religiosa, ideológica, dos meios de comunicação, do cinema, da cultura, impondo sua visão. Nos confrontamos com uma espécie de “hamburguerização” da cultura mundial, promovida pelos Estados Unidos e pelo Ocidente. Espero que não sigamos o destino dos dinossauros, ou seja, que a espécie humana seja eliminada.

As forças de baixo

Apesar desse panorama preocupante, há esforços diferentes, de amplos setores da humanidade que buscam alternativas...

Claro, por sorte! As forças que vêem de baixo, que encontram ressonância, por exemplo, no Fórum Social Mundial de Porto Alegre. É a sociedade civil mundial com seus movimentos e organizações, setores importantes de partidos, igrejas, ongs, que pensam em outro mundo. Que afirmam que não estamos condenados a essa monocultura de dominação imposta pelo sistema vigente.

Como interpretar tudo isto?

Como um processo. É muito provável que nasça outro tipo de consciência, primeiro, e que se fortaleça com práticas e redes de articulação dos que sonham e apostem em utopias até propor alternativas. E este é o sentido desta grande onda em movimento. Nós não temos a hegemonia. Mas o sistema dominante também não a tem. Há uma crise de hegemonia. Isso faz com que este momento histórico seja de crise, mas não de tragédia. Depende de nós convertê-lo em um salto qualitativo. Se não conseguirmos, então aí sim será uma tragédia muito perigosa. Retomo algo do pensamento de Hegel em sua filosofia da história. O ser humano que não aprende nada da história, aprende tudo do sofrimento. Todos estamos sofrendo muito e oxalá que não seja em vão. Que seja a dor do parto de uma nova forma de vida social planetária.

A idéia de "outro mundo é possível" identifica há cinco anos o Fórum Social Mundial . Em um espaço altermundista por excelência, quais são as dinâmicas ou iniciativas a serem melhoradas?

Em minha visão, o tempo de sonhar e de difundir está percorrendo seu caminho. Nestes anos temos acumulado visões, fortalecido redes. E agora penso que temos que começar a dar passos concretos. Seria importante chegarmos a dois ou três pontos de convergência mundial, e passarmos a pressionar, atuar e viver uma alternativa. Senão corremos o risco de que os fóruns se tornem espaços muito interessantes, muito alegres, mas patinaremos. O risco de nos contentarmos com isto é muito bonito, mas insuficiente. Pode nos acontecer como no Vaticano, quando o Papa vê a praça de São Pedro totalmente cheia e pensa que todos são católicos. Quando na realidade uma grande parte são turistas que chegam com programas de agências de viagem para ver o Papa, não por fé, e sim por turismo. Não se deve cair em ilusões.

Consensos mínimos, lutas contundentes

Em que e como "ser mais concretos"?

Penso em dois pontos onde se pode chegar a consensos. O primeiro, a água. É um dos aspectos chaves da humanidade. Só 3% de toda a água é potável e dessa porcentagem só 0,7% é acessível ao consumo humano. E desse mínimo, uns 80% vão para a agroindústria e sobram escassos 20 % destinados à conservação da vida, das plantas, dos animais. Caminhamos para uma grande crise da água que vai ser pior do que a dos alimentos. Porque sem água uma pessoa se desidrata em cinco dias e morre.
É preciso promover um pacto sicial mundial pela água tem que ser promovido que não existe e lutar de forma muita articulada contra a privatização. Há uma corrida frenética das transnacionais pela privatização, porque sabem que quem controla a água controla a vida e quem controla a vida tem o poder. Temos que impedir que a água entre no mercado com um produto a mais. Devemos enfrentar o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, que pedem a privatização desse elemento vital como condição para liberar créditos aos países mais fracos. Temos que imitar os indígenas bolivianos que puseram para correr as transnacionais francesas.

E o segundo ponto?

Uma enorme aliança contra a guerra. Atenção, contra a guerra, não pela paz. A sua maneira Bush e Pinochet também querem um tipo de paz. Temos que nos pronunciar contra a violência da guerra como instrumento de “solução” de conflitos e de “ordem”. Impor o diálogo diplomático em todos os níveis; promovê-lo na família, nas comunidades e entre Estados. Evitar a violência que é um dos piores produtos do patriarcado. E, então, promover o diálogo incansável, o intercâmbio, tudo que favoreça a cooperação e a solidariedade, contra a competição que é a lógica do sistema. Esses são dois pontos onde todos poderíamos estar a favor. E então é preciso miliatar. Fazer grandes manifestações. Pressionar os Estados, as empresas, os quartéis. Denunciar todo tipo de militarismo. Opor-se aos militares onde aparecerem. Criar uma nova consciência prática de uma humanidade que ensaia já, concretamente, passos em direção a um paradigma novo de civilização.

Teologia da Libertação e pensamento altermundista

Na última semana de janeiro, dois dias antes de começar a quinta edição do FSM, aconteceu em Porto Alegre um Fórum Mundial de teólogos da libertação. O que ele trouxe de novo?

Este encontro mostrou a firmeza e ritmo da Teologia da Libertação. É preciso sublinhar isso, porque nem todos sabem , que ela continua existindo, está muito viva e é mundial. Não são muitas as teologias, hoje, com presença em todos os continentes, tanto no Sul como no Norte. Comprovamos, em Porto Alegre, que ela tem conhecido um desenvolvimento interno, pois tudo que está vivo ativa um diálogo permanente com a realidade. Ela não trabalha com certezas, senão, com jurisprudências pastorais, como se diz no dialeto teológico.

Ao mencionar esse desenvolvimento interno e essas mudanças, se refere às diferentes etapas ou momentos da história da Teologia da Libertação?

Em mais de 30 anos passamos por três etapas. A primeira geração, a de Gustavo Gutierrez, Juan Luis Segundo, Ronaldo Muñoz e minha estevee muito focalizada no pobre econômico. Incorporamos uma leitura crítica da realidade com elementos do marxismo, por exemplo, que nos ajudaram a compreender a estrutura e funcionamento das classes. Isso se deu, no fundo, para compreender que o pobre não é um pobre, mas um empobrecido. Sua pobreza é resultado de mecanismos econômicos.

A segunda geração está descobrindo os diferentes rostos da pobreza: o indígena, com o grande peso cultural sobre suas costas; o negro com o pano de fundo de séculos de escravidão; as mulheres que sofrem uma cultura patriarcal há mais 20 mil anos atrás.

A partir dos anos 90, com o crescente alarme ecológico planetário, muitos desenvolveram uma eco-teologia da libertação. Eu, particularmente, me empenhei muito nisso e publiquei o livro programático “Ecologia: grito da terra, grito dos pobres”, traduzido em vários idiomas. Nele, apresenta-se uma teologia que ajuda a superar a agressão e opressão contra o ecossistema. Não se trata de uma nova dimensão, mas especialmente, um novo olhar sobre a totalidade, da terra até a humanidade. Ver como a teologia pode colaborar junto com outras forças para que a humanidade seja mais livre. Porque temos somente essa casa. Não se pode mandar os pobres viverem na Lua ou em Marte. Temos que resolver os problemas que são nossos.

Então, de certa forma, o fórum de teólogos, permitiu encontrar essas diferentes expressões ?

Sim. Existem grupos que lutam contra a pobreza outros são mais culturais e também em diversos seguimentos. Isso mostra a vitalidade da Teologia da Libertação. Outro ponto a ressaltar, a terceira geração é muito menos teórica que as anteriores, mas talvez está mais inserida na pastoral. Diria que fazem a teologia da pequena libertação, cotidiana, das comunidades.

Vendo os valores da teologia da libertação, não seria o momento de imaginar uma nova “Teologia do Altermundialismo”?

Desde o princípio nossa aposta foi a de que uma nova sociedade é possível. E que se trata de libertarmos esta sociedade capitalista, neoliberal, que vem explorando, em suas diversas variantes, há muitos séculos. Buscando uma sociedade mais integrada e mais humana, como alguns já formularam no socialismo. Nós, no Brasil, nos inserimos mais em um contexto de democracia participativa, mais radical, não somente representativa. Esses parâmetros sempre estiveram presentes.Nós resolvemos em janeiro, em Porto Alegre, é que nossos encontros seguirão o Fórum Social Mundial. Queremos pensar juntos com os demais sobre o futuro da humanidade e também aportar elementos sobre nossas tradições espirituais, éticas, que podem completar a visão mais global. Não temos nenhuma arrogância nem pretensão de hegemonia.

Isso quer dizer uma teologia modesta, de serviço, de acompanhamento?

Sim. Pode-se dizer que nós, os cristãos em geral, temos o discurso de libertação muito articulado, mas a prática da libertação é de outros. Só que nós queremos fazer juntos, Temos que ser humildes, cooperativos e não nos distanciarmos de um movimento global, que finalmente e essencialmente que sirva ao povo. O povo é humilde, não é arrogante e nem possui uma visão imperialista do mundo. Queremos que se criem condições mínimas para que cada um possa comer duas vezes ao dia, ter sua casa, mandar seus filhos para a escola, poder atender suas necessidades de saúde. A pequena utopia da dignidade mínima dos seres humanos, que devemos manter sempre próxima de nós.


Tradução: Planeta Porto Alegre

sexta-feira

Humor:





E a luz se faz negócio
Déborah Moreira
Falta pouco para que o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, consiga aprovar na Assembléia Legislativa do Estado o Projeto de Lei 02/05 que prevê a privatização da CTEEP, Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista, a maior empresa do setor Brasil. Apesar de ter se comprometido, durante a campanha eleitoral de 2002, a não realizar mais privatizações, sob a alegação de que o Programa Estadual de Desestatização (PED) estaria ultrapassado, Alckmin está determinado a incluir a estatal de energia na retomada do PED, um dos maiores programas de privatização do país e da América Latina, instituído em 1996.
A justificativa dada para a venda é o pagamento da dívida da CESP, Companhia de Energia de São Paulo, que, de acordo com balanço da empresa de 2004, gira em torno dos R$ 11 bilhões (conforme variação do dólar, já que 69% da dívida estão atrelados à moeda estrangeira). Apesar de não haver garantias legais para isso, o governo afirma que o dinheiro arrecadado com a operação servirá para saldar os compromissos da CESP. Porém, segundo último Balanço Patrimonial da CTEEP, a empresa tem um valor estimado em R$ 4,6 bilhões, e seu valor de mercado não ultrapassa os R$ 1,5 bilhão. Apesar de deter 64% das ações ordinárias (com direito a voto), o Estado de São Paulo só possui 40/% das ações gerais. Ou seja, serão repassados apenas R$ 700 milhões aos cofres públicos, o que não paga nem as parcelas deste ano do empréstimo feito pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). “É uma falácia. De nada vai adiantar a privatização da CTEEP para sanar as dívidas da Cesp”, declarou o líder do Partido dos Trabalhadores (PT) na Assembléia Legislativa, o deputado Renato Simões.




Na prática, o PL inclui a CTEEP na Lei 9361/96, que regulamenta o PED e autoriza a privatização das empresas de transmissão de energia elétrica, até então controladas pelo Estado. Contudo, o setor de transmissão, responsável pelo transporte da energia elétrica do local onde ela é gerada até o local de consumo, era tido como estratégico até bem pouco tempo pelo próprio governo. “O sistema de transmissão é um monopólio natural já que os custos para se manter duas linhas de transmissão seriam muito altos”, avaliou o professor Cláudio Antonio Scarpinella, colaborador do Programa de Pós-graduação de Energia da USP. Além disso, da forma como está, não há como ter certeza de que serão feitas todas as obras necessárias para a manutenção da rede.
Em quase todo país, o sistema de transmissão permanece sob controle estatal e vem sendo melhorado nos últimos anos, conforme autorizações da Agência Reguladora Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Mas, algumas estimativas recentes elaboradas por técnicos apontam para um déficit de obras de cinco anos, só em São Paulo. “Ao mesmo passo que vem crescendo a demanda pela geração de energia, a área de transmissão também precisa crescer para poder transporta-la”, explicou Scarpinella.“O modelo anterior de privatização não previa o setor de transmissão. É um patrimônio do povo. Agora, o que tem que ser discutido mais a fundo é o modelo que queremos para o setor energético em todo o país. Tem que haver uma discussão federal”, disse o presidente do Sindicato dos Engenheiros de São Paulo, Murilo Celso de Campos Pinheiro, durante a Audiência Pública sobre a CTEEPP, ocorrida na terça-feira, dia 03 de maio.
Durante a audiência, que tomou boa parte do dia, um grupo de cem trabalhadores da companhia esteve presente no auditório para protestar contra a venda da estatal, criada em 1999, a partir da divisão da CESP e da Eletropaulo (em 2001 foi dividida e uma das partes, a EPTE, Empresa Paulista de Transmissão de Energia Elétrica, foi incorporada a CTEEP). Atualmente, são 2 mil 985 funcionários altamente capacitados, atuando em 102 subestações, responsáveis pela operação de 11.781 quilômetros de linhas de transmissão. Ainda com relação aos funcionários, 82% estão na área técnica, 30% possuem ensino superior e 55% estão na faixa etária entre 31 a 45 anos.
Caso a privatização seja concretizada, não há segurança quanto à permanência dos trabalhadores. Presente à audiência pública, o secretário estadual de Energia e Recursos Hídricos, Mauro Arce, reafirmou não ter nenhuma garantia sobre os trabalhadores limitando-se a dizer que “está aberto a negociações”. Segundo o sindicato estadual da categoria, nos últimos 10 anos foram fechados 47% dos postos de trabalho no setor, o que representa 19 mil e 807 desempregados em todo o país.
Os sindicalistas afirmam que a CTEEP é uma empresa lucrativa e que as justificativas do governador para a venda não se sustentam. “'O governo perdeu o debate. Agora vamos esperar para ver de que forma ele vai reagir aos argumentos apresentados neste encontro”, disse o deputado petista Cândido Vaccarezza, no final da audiência. Só no ano passado, o lucro da CTEEP foi de R$ 348 milhões, um crescimento de 56% em relação a 2003, quando a empresa transportou cerca de 118.000 GWh, quantidade superior a energia consumida em todo Estado (93.608 Gwh). Em 2005, já houve um investimento no valor de R$ 523 milhões, além dos recursos em caixa de R$ 666 milhões.
Outra preocupação da categoria é defender desde já a permanência da EMAI, Empresa Metropolitana de Água e Esgoto, que, conforme lembrou Wilson Marques, presidente do Sinergia de Campinas, durante a audiência, pode estar na mira das privatizações. Apesar do maior controle acionário ser da Petrobrás (de 39, 02%), o governo do estado possui 38,78% do total de ações da EMAI. A empresa surgiu também a partir da cisão da Eletropaulo e atualmente opera um sistema hidráulico e gerador de energia elétrica localizado na região metropolitana de São Paulo, no Médio Tietê e Vale do Rio Paraíba do Sul. Por causa da sua localização tem um papel ambiental muito importante. Sua principal característica é a de operar as águas superficiais, e os recursos hídricos disponíveis, de forma racional promovendo geração de energia e o controle de cheias na capital paulista, além de servir como reservatório de água para o abastecimento público.
“Estamos aqui fazendo exatamente o que o presidente da república nos disse: estamos ‘tirando a bunda da cadeira’ para reivindicar nossos direitos. O que está em jogo aqui não é simplesmente a venda da CTEEP mas, sim, a crise de uma das maiores companhias de energia elétrica, cuja dívida vem desde a ditadura militar”, lembrou o presidente do Sindicato dos Eletricitários do Estado, Antonio Carlos dos Reis, referindo-se a declarações do Presidente Lula sobre uma possível “acomodação” das pessoas sobre a cobrança de juros altos pelo bancos.
Passando o trato
Desde que o projeto foi apresentado, no dia 1º de fevereiro, o governo do estado vem colecionando algumas derrotas mas, mesmo assim, está conseguindo vencer as trincheiras estabelecidas pelos deputados de oposição. As derrotas até agora foram a perda da presidência da Assembléia Legislativa e a diminuição do número de Comissões sob controle de seu partido. Por outro lado, durante as plenárias que discutiram o projeto, a oposição apresentou um total de 32 emendas. Todas foram rejeitadas. Na contagem do tempo necessário para que seja levado a votação, restam apenas pouco mais de uma hora das 12 horas exigidas. “Sinto em dizer mas o negócio já está fechado. Estamos aqui fazendo oposição, criando barreiras e etc, mas já está tudo decidido. Para o governo não há mais nada a ser discutido. Já se sabe quanto vai custar e quem é o provável comprador”, exclamou o deputado Adriano Diogo (PT).
A bancada petista na Assembléia questiona o destino do dinheiro arrecadado com a venda da estatal e diz que tentará de todas as formas impedir a concretização do negócio. “Iremos à esfera judicial, se for preciso”, prometeu Simões. Ainda segundo o líder do PT na casa, a intenção do governo do estado é meramente eleitoreira, já que no ano que vem haverá eleições para governador em todo o país. “Eles propõem uma saída de governo e não uma saída de Estado”, afirmou.
Durante a audiência pública foi apresentado um projeto alternativo elaborado pelos parlamentares petistas e sindicalistas: a criação de uma holding entre a CESP, CTEEP e EMAI que se chamaria Companhia Paulista de Serviços Públicos de Energia e Infra-Estrutura e que teria um capital equivalente ao valor das ações pertencentes ao Estado de São Paulo, emitidas pelas estatais e pela CPP Companhia Paulista de Parcerias (já criada através da Lei 11.688/2004). Conforme a proposta, o Estado continuaria controlando, indiretamente, essas companhias através da holding, que pode ser criada imediatamente, não dependendo da concordância ou deliberação das assembléias gerais das companhias emitentes das ações, futuras controladas da holding. “A idéia é diluir a dívida da CESP no capital das outras empresas. Assim a dívida diminui e fica mais fácil administrar a crise”, explicou Simões.
Privatizações à FHC
Presidido pelo próprio Geraldo Alckmin, o PED foi criado pelo antecessor de Alckmin, o então governador Mário Covas, morto em 2001 - liderava o PSDB paulista - e somou uma arrecadação de R$ 71,6 bilhões. Apesar de ser um número alto, separadamente, as estatais foram vendidas a preço de banana. Foram elas: de distribuição de eletricidade (Companhia Paulista de Força e Luz - CPFL, Elektro, Bandeirantes e Metropolitana), de geração de energia (Cesp, Paranapanema, Cesp Tietê); de distribuição de energia (Eletropaulo) e de gás (Comgás e Área Sul e Noroeste do Gás), além de parte da Sabesp, Fepasa Ceagesp, e das rodovias estaduais .

O modelo de privatização adotado pela gestão do PSDB no estado foi o mesmo orquestrado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, regulamentado pelo Programa Nacional de Desestatização-PND, de 1991, responsável pela venda de 68 empresas e participações acionárias estatais federais, a maioria na siderurgia, química e petroquímica, fertilizantes e energia elétrica. Do total arrecadado, 72% desse valor (R$ 51,7 bilhões) foram resultado da venda só do setor de energia elétrica, segundo Balanço Geral do Estado de SP de 2001 a 2003 e o Relatório de Atividades do Governo do período.

quinta-feira


UERGS: democracia ferida

Erick da Silva*

Os problemas que passam a UERGS, fruto de visões equivocadas de ensino e do descaso do Governo Rigotto, infelizmente não chega a ser uma novidade. Para certificar-se deste quase abandono, basta olhar os cortes nos investimentos feitos na universidade nos últimos anos, por exemplo.
A novidade é que ao final de 2004, o Reitor da UERGS publicou a Resolução n° 08/2004, que passou praticamente desapercebida pela maioria da sociedade. Nesta resolução foi instituído o Código e a Comissão de Ética da UERGS. Nesta, fica claro o objetivo de inibir a livre atividade e manifestação pública no interior da universidade nos três segmentos da instituição (professores, corpo de funcionários e estudantes).
A resolução reiteradas vezes expressa limites e barreiras para a manifestação e a organização dos segmentos da universidade, e isto por diversas vezes se coloca de maneira dúbia. E esta dubiedade do que seria "adequado" e "ordeiro" (conforme as expressões utilizadas na resolução) se torna mais preocupante ao se observar quem julgará isso: uma Comissão de Ética formada por cinco pessoas, todas nomeadas pelo Reitor. Sem haver nenhuma abertura democrática no processo de escolha dos integrantes desta comissão. E esta Comissão, extremamente parcial, terá poderes para definir sanções que, conforme expresso no art.6° da resolução, podem ser de "(...) repreensão, suspensão ou afastamento definitivo". Ou seja, abre-se a possibilidade de haver perseguições políticas.
Indo completamente na contramão da história. O Brasil vive neste ano a passagem dos 20 anos do primeiro governo civil depois da ditadura militar de 64, e de um processo lento de consolidação de sua democracia. Onde o Rio Grande do Sul é exemplo para o mundo, ao implementar práticas que aprofundaram a democracia, como o Orçamento Participativo. Causa estranheza uma medida destas, tomada pelo Reitor Boeira. A única explicação possível é a intolerância ao contraditório, a divergência de idéias.
Ações como esta, frutos de uma visão tacanha de sociedade, não compreende o papel formador para o estudante que tem a sua participação no movimento estudantil. Propiciando uma maior integração com o todo, aprimorando o senso crítico e desenvolvendo a própria cidadania do indivíduo.
Não se constrói uma verdadeira universidade sem o direito há ampla democracia interna. Sem a garantia de liberdade de organização e manifestação. Triste momento para a nossa universidade pública.

Erick da Silva é da União Estadual de Estudantes do RS

segunda-feira

O velho amigo de Henry Kissinger

José Arbex Jr.

“Sempre admirei pessoas que combinam teoria e prática. Henry Kissinger é um homem de elevado intelecto. E, inegavelmente, é um homem de ação. É um raro tipo de homem que pode, com sucesso, traduzir o pensamento estratégico em políticas públicas e medidas concretas. Sua grandiosa e importante produção acadêmica só encontra paralelo em sua contribuição para a formulação da política externa dos Estados Unidos, assim ajudando a mudar o mundo em que vivemos, especialmente nos anos 70. É, portanto, um grande prazer para mim ser um conferencista, nesta noite, no programa Henry Kissinger de palestras sobre política externa e relações internacionais.”
O conferencista que presta tão tocante homenagem ao grande homem é ninguém menos que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, durante uma palestra proferida em 23 de fevereiro último, no centro John W. Kluge da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. Ao assumir o microfone, FHC agradeceu a presença de Kissinger, por ele qualificado de “um velho amigo meu e de todos vocês”. A íntegra da palestra pode ser encontrada, em inglês, no site do Instituto Fernando Henrique Cardoso (www.ifhc.org.br/theneed.htm). A íntegra? Não exatamente. No texto oferecido ao público pelo próprio FHC, você não encontrará a menção ao “velho amigo”, notam os redatores da revista eletrônica Carta Maior (cartamaior.uol.com.br), edição de 3 de março. Em compensação, você pode ver e ouvir a saudação, no site do centro Kluge (www.loc.gov/loc/kluge/kluge-cardoso.html).
O “velho amigo” foi responsável por algumas das maiores matanças produzidas nos anos da Guerra Fria (basta lembrar os horrores do Vietnã, Laos e Cambodja), e teme sair dos Estados Unidos, tantas são as acusações e pedidos de extradição para ser levado a julgamento como criminoso de guerra. Isso, por si só, já seria suficiente para qualquer brasileiro sentir vergonha de ver um ex-presidente prestar-se a um papel tão infame. Mas a coisa fica realmente sórdida quando se recorda que, durante a ditadura militar, FHC recorreu ao Chile de Salvador Allende, em busca de asilo. Foi bem recebido, como se sabe. E quem foi o mentor intelectual do golpe desferido por Augusto Pinochet, que resultou na morte de Allende? Ninguém menos que o “velho amigo”. Talvez por isso, para não causar embaraços, o representante do centro Kluge, ao apresentar o palestrante, tenha se referido apenas de passagem aos anos de exílio de FHC, sem mencionar a incômoda palavrinha “Chile”.
Às vezes, a memória causa muito aborrecimento. FHC sabe disso: lembram quando ele pediu que todos esquecessem os seus escritos? Pois é. Não há limite para a iniqüidade.
Se a coisa parasse por aí, o escândalo já seria de bom tamanho. Mas o episódio apenas abre a tampa do bueiro. Deu no Financial Times, em 25 de fevereiro, como foi bem notado, na Carta Maior, por Marco Aurélio Weissheimer: FHC participa de um grupo de monitoramento da situação política da América Latina, com Carla Hills, mulher de confiança da família Bush e uma das principais articuladoras da Nafta (Associação de Livre Comércio da América do Norte). Uma das primeiras providências do tal grupo, com sede em Washington, foi encaminhar um relatório à Casa Branca para pedir uma “presença maior” dos Estados Unidos no hemisfério. O relatório cita, especificamente, o governo do presidente Hugo Chávez como exemplo “preocupante” de “desrespeito à democracia”. A “polarização política” na Venezuela, diz o velho amigo de Kissinger, ameaça produzir instabilidade em toda a região andina.
FHC e a torcida do Corinthians sabem perfeitamente bem da participação da CIA nas tentativas de golpe de Estado para derrubar Chávez; o ex-presidente sabe também que o apelo à “presença maior” dos Estados Unidos abre uma avenida para uma eventual intervenção na América Latina, que, aliás, já está em curso na Amazônia colombiana e equatoriana; e sabe que, não fosse a heróica resistência de iraquianos e afegãos, a sanha intervencionista de George Bush teria produzido resultados ainda mais catastróficos no planeta. O que pretende, portanto, o “velho amigo” de Kissinger?
Não é absurdo supor que entra em seus cálculos cultivar as amizades certas em Washington, com o objetivo de facilitar o caminho para a disputa presidencial brasileira de 2006. Que tal criar um distanciamento entre a Casa Branca e o governo Lula, mostrando-se muito mais confiável do que o metalúrgico do ABC, que nem sequer fala inglês? Não que o presidente Luiz Inácio represente qualquer desafio, longe disso, como mostra a participação vassala brasileira no Haiti. Mas Lula mantém encontros mais ou menos cordiais com Chávez e acaba de anunciar um convênio comercial com a Venezuela; e ainda por cima comete o ultraje de se abster em votações organizadas pela ONU para condenar Cuba. Não é exatamente o perfil desejado por Bush.
Em visita ao Brasil, no final de março, o secretário da Defesa Donald Rumsfeld cobrou publicamente, ao Planalto, um posicionamento mais duro contra as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia e o congelamento das relações com Caracas. Humanista e pacifista sincero, Rumsfeld condenou o “terrorismo” das Farc e se disse preocupado com a aquisição, pela Venezuela, de 100.000 fuzis AK-47 russos. Para que a Venezuela precisa dessas armas, qual o objetivo de tanta violência, pergunta a nova versão de Gandhi. Alguém tem uma sugestão? Rumsfeld não conseguiu tudo o que queria, pelo menos por enquanto. O governo brasileiro recusou-se a qualificar as Farc como terroristas, e manteve o princípio de respeito à soberania nacional, isto é, de não ingerência nos assuntos internos de outros países. Decididamente, FHC é mais confiável.
O quadro, então, é esse. O “velho amigo” de Kissinger integra um “grupo de monitoramento” da América Latina e pede uma “presença maior” de Bush no hemisfério. FHC não apenas esqueceu tudo o que escreveu (não que tenha sido um Lênin ou coisa parecida, mas ao menos pretendia-se dotado de coluna vertebral), como apagou da memória os Allende do passado, para não falar de professores como Florestan Fernandes.
Você convidaria esse sujeito para jantar em sua casa?
José Arbex Jr. é jornalista.

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