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terça-feira

Perspectivas do Projeto Nacional 


Juarez Guimarães



Hoje a imaginação do Brasil criada pelo governo Lula vive um impasse republicano. Responder ao impasse da financeirização e à construção pública de uma ética política republicana significa alargar no PT e no governo os espaços de diálogo entre a esquerda e o centro histórico do partido.

Abordaremos o tema “O governo Lula, o impasse republicano e a esperança dos brasileiros" a partir de três teses encadeadas. A primeira tese procura exatamente captar uma novidade decisiva da conjuntura política do terceiro ano do governo Lula. Não há como falar das perspectivas do projeto nacional sem partir do presente e do futuro do governo Lula. A novidade é que a oposição liberal-conservadora, após ter recuperado identidade e presença decisiva nas eleições municipais de 2004, alcançou já um grau de presença pública, capacidade de articulação e iniciativa política que a tornam capaz de disputar a agenda e o futuro do país com o governo. A derrota na eleição da presidência da Câmara de Deputados foi, neste sentido, um divisor de águas. Há hoje um claro impasse instalado do movimento político ascendente que levou Lula à presidência do país.




Este impasse foi se formando, tornou-se central e pode se tornar fatal para as perspectivas do governo Lula, a partir da aliança cruzada entre a forte oposição liberal-conservadora e a ação de bloqueio de avanços possíveis, de esterilização de forças sociais transformadoras e de confusão identitária exercida pelas posições liberais dentro do próprio governo Lula.

O que torna vulnerável a posição do governo Lula e fortalece a oposição liberal-conservadora são principalmente duas dimensões combinadas: o modo como o governo responde ao principal problema deixado pelo governos Fernando Henrique – a dívida pública, em particular a sua dimensão financeira – e uma carência dramática de identidade ético-política republicana.

Arbitrar o conflito crucial de interesses entre o sistema financeiro e os rentistas, de um lado, e a esmagadora maioria da população brasileira, de sua consciência democrática, de outro, tão brutalmente a favor dos primeiros, dos banqueiros e rentistas, como vem sendo feito, é anti-republicano porque trabalha com uma ordem assimétrica de direitos e deveres. Isto é, os já mais privilegiados são exatamente os que mais lucram com a forma como o governo gere a dívida pública. Esta atitude não pode mais ser justitificada por um constrangimento inicial de governo. É uma opção política que, ao ser defendida, legitima o que é publicamente injustificável perante a consciência democrática do país.

Conflitos podem e devem ser arbitrados por um governo. Mas um governo não pode arbitrar sua imagem pública, dissolver a sua identidade em valores contraditórios. A ausência deste princípio básico de comunicação – a nitidez da imagem - torna-se dramática quando exposta à sanha da mídia liberal-conservadora. A imagem de um governo semi-ético ou semi-republicano, ou não plenamente ético ou não plenamente republicano, resvala para a sua falta perante a opinião pública. Ela distancia o governo Lula da fome de republicanismo dos brasileiros. Criam uma barreira entre o governo Lula e o que há de mais avançado na sociedade democrática brasileira.

A estratégia de arbitrar os conflitos da sociedade brasileira, a partir de dentro do governo, não funciona mais como padrão de governabilidade quando estes conflitos, à diferença dos dois primeiros anos de governo, já alcançaram a condição centralizadora da agenda pública do país sob a dinâmica governo-oposição. O governo não tem mais o espaço para exaurir suas energias e a própria identidade nos conflitos internos. Essa, aliás, foi a grande lição da sua principal derrota legislativa.

Neste contexto de uma aliança cruzada entre a forte oposição liberal-conservadora e as posições liberais dentro do governo Lula , pode-se criar – e ,de modo inicial , já estamos vivendo esta perigosa dinâmica – um complexo de rejeição+ anomia: somos asperamente atacados pelas forças liberais conservadoras mas não criamos as condições para sermos defendidos com entusiasmo pelas forças democráticas e populares.

Esta afirmação é exagerada ou unilateral? O governo Lula é, na verdade, muito melhor do que parece. Parece pior do que é não apenas porque em geral a mídia omite seus efeitos e magnífica seus defeitos. Mas porque, hoje, se atentarmos bem, as conquistas mais importantes do governo têm o seu próprio contraditório, parecem neutralizadas ou ameaçadas pela ultra-conservadora política de gestão do Ministério da Fazenda e do Banco central. : o crescimento e a geração massiva de empregos, os efeitos distributivos do Fome Zero, a promissora combinação da reforma agrária e da agricultura familiar, a auspiciosa reforma universitária e a criação da Fundeb, uma política mais vigorosa de recuperação do salário-mínimo e assim por diante. É o próprio governo quem fornece à oposição liberal os antídotos, a contrafação, ao reconhecimento público de seus méritos.

O que este diagnóstico indica para esta fase final de governo, sob o risco de sermos derrotados, é que a transição deve avançar decisivamente, em atos governativos e simbólicos, em identidade e dinâmicas claras de superação do paradigma liberal. Mas quem pode liderar este processo de criação de legitimidade política para avanços senão o próprio PT?

Um liberalismo petista?
A segunda tese que gostaríamos de defender aqui é que a clarificação, de um ponto de vista de uma coerência republicana, do programa do PT para o país é condição necessária para começar a sair do impasse antes analisado.

Há certa legitimidade na representação de posições liberais dentro do governo Lula, em uma lógica de transição e em posições não dominantes, porque esta representação atualiza para o sistema de decisões do governo os condicionantes políticos e objetivos adversos à mudança. Mas seria desfigurar e cindir a cultura petista levar a pactação com posições liberais à categoria de programa partidário. Em uma lógica de transição, o governo deve arbitrar conflitos crescentemente na direção de suas metas. O PT, nesta dinâmica, deve cumprir o papel de atrator público da transição, das suas metas, de criador da legitimidade de seus avanços tornados possíveis. Se ele também arbitra suas posições com o liberalismo e desvanece sua identidade republicana, o principal partido do país e líder da coalizão perde esta condição de atrator da transição.

Queremos dialogar, neste momento, com a versão inicial, portanto, a ser reformulada e desenvolvida, do campo majoritário expressas no documento “ Bases para um projeto do Brasil”. Este documento pretende, como afirma, “orientado pelos princípios e valores do PT , refletir e incorporar as principais lições que podem ser extraídas da experiência maior de governar o Brasil nos dois primeiros anos do governo Lula e resgatar e atualizar os nossos objetivos estratégicos. ”

Há, pelo menos, cinco dimensões importantes nas quais este documento se distancia criticamente das posições liberais. São eles:

- A fixação do tema do desenvolvimento como problemática central, retirando os termos do debate da fórmula neoliberal de “retomada do crescimento com manutenção da estabilidade”. A definição da problemática do desenvolvimento como central é fundamental para a superação do paradigma neoliberal.

- A construção da noção básica e estruturante de um “novo padrão de desenvolvimento” em que o tema do crescimento aparece conectado com a diminuição da pobreza e o ataque frontal às desigualdade de renda e regionais, além da construção da soberania do país. Defende-se em várias passagens que a superação das desigualdades é condição para o desenvolvimento sustentado.

- A crítica que aparece em várias passagens aos padrões de gestão da economia e do Estado que prevaleceram nos anos noventa.

- A defesa da continuidade das referências ao socialismo petista agora conjugado com a noção de que o papel histórico do PT é dirigir a construção de nossa república imperfeita. Isto está perfeitamente dentro da lógica do documento histórico “ Socialismo petista” quando relaciona socialismo democrático com as tradições brasileiras.

- A defesa vigorosa da ética vinculada à reforma política como momento de identidade do partido e do governo.

Esta intenção de criar um novo projeto para o país a partir dos valores petistas é, no entanto, contraditada, em suas conseqüências, silenciadas em questões chaves e tornada ambígua em várias conclusões, pelo caráter constitutivo do documento de ser a mediação possível, a arbitragem negociada, entre posições republicanas e liberais no campo majoritário do PT. Em várias passagens importantes, o documento, em sua versão inicial, está neste sentido aquém mesmo de práticas e conquistas do governo Lula.

Esta contradição aparece nitidamente em seis questões decisivas. Em primeiro lugar, a defesa acrítica e, portanto, segundo os valores liberais correntes, da estabilidade fiscal. Ora, o PT aqui deve assumir claramente uma atitude ofensiva e crítica à noção de “equilíbrio fiscal” tal como formulada pelos neoliberais ou FMI. Não será aceitando autocriticamente as lições de Malan que conquistaremos crescimento com estabilidade. Keynesianos, neokeynesianos, schumpeterianos, socialistas de diversos matizes, ou mesmo pessoas de bom senso, postulam conceitos contrastantes de equilíbrio fiscal. Há consenso que se deva trabalhar unilateralmente com a noção de superávit primário e deixar irresponsavelmente as dívidas financeiras se expandirem sem controle? Investimentos de estatais ou títulos da dívida agrária são gastos contábeis correntes? Dívidas privadas podem ser renegociadas, com o aval do Estado, mas dívidas públicas em hipótese nenhuma? Pagamentos de dívidas financeiras, corrigidas a taxas de juros escandalosos, devem sempre receber prioridade mesmo em prejuízo de gastos sociais que salvam vidas? O mesmo se pode afirmar em relação à estabilidade dos preços. É decisivo manter a inflação sob controle. Mas só monetaristas dogmáticos e selvagens têm o remédio único e infalível contra a inflação, custe o que custar? Ao legitimar e reiterar a defesa da prática de juros absurdos, não estaríamos também legitimando a versão mais conservadora do liberalismo econômico?

Em segundo lugar, há no documento a ausência de uma defesa clara e sistemática dos direitos do trabalho; da reforma agrária como projeto estruturante de um novo desenvolvimento. Em quarto lugar, a posição acomodatícia diante da financeirização. Em quinto, a ausência de um tratamento sistemático da democracia participativa.

Porém, o item mais sintomático desta contradição do documento é o 39, quando fala da função do Estado, tomando equidistância do nacional-desenvolvimentismo e do neoliberalismo. Há aí um grave erro de análise histórica: a aceitação do ponto de vista liberal que toma como nacional-desenvolvimentista a segunda metade dos anos sessenta e os anos setenta, do regime militar, para desqualificá-lo. E outro que fere a própria natureza republicana do nosso projeto: o PT deveria se situar como antagonista do projeto neoliberal e como propositor de uma superação critica do nacional-desenvolvimentismo, que tinha uma noção básica de desenvolvimento.

O público e a imaginação do Brasil
Em sua obra de memórias, Celso Furtado chamou de “ A fantasia organizada” o volume que trata do auge das políticas públicas no período nacional-desenvolvimentista. Aquele que foi formado na cultura do positivismo, com sua apologia da ciência e da racionalidade, ao longo dos anos foi valorizando as noções de vontade política e imaginação social para a superação do subdesenvolvimento.

Qual é hoje a imaginação petista do Brasil?

A célula da imaginação liberal – não a falácia do “mercado livre”, mas este ativamente regulado para os benefícios do capital e ativamente desregulado contra os direitos do trabalho – era, ao mesmo tempo, uma resposta à crise do Estado brasileiro. Qual pode ser a célula da imaginação petista senão o público,formado por três setores: o Estado democratizado e sob controle social ; a rede ampliada de políticas públicas que se interage com os associativismos políticos, sociais, econômicos e culturais do povo brasileiro; a regulação forte e ativa, de sentido universalista, do mercantil privatista?

Mas o público não está plenamente formado na democracia brasileira. É descontínuo, fragmentado e parcial. É assolado permanentemente pelo fantasma da corrupção sistêmica. Demanda, pois, um ethos de formação e uma inédita mobilização de vontade. Requer obstinada luta contra os valores mercantis privatistas e patrimonialistas. Reclama ampla inovação institucional, alargamento e aprofundamento das regras democráticas e participativas,.

É por isso que a ética na política é tão fundamental para nós: sem ela, é a nossa ferramenta para mudar o Brasil – o público – que cai em descrédito. Para os neoliberais, não, porque a desmoralização do público é apenas o reverso da sua apologia do privado mercantil.

Com esta ferramenta do público seria possível retomar causas republicanas fundamentais e dar a elas respostas criativas e contemporâneas que não eram possíveis no período nacional-desenvolvimentista por razões históricas, por limitações estruturais ou programáticas.

Hoje, é possível projetar um ideal de soberania política no quadro de uma integração ampla e plena, não apenas econômica, da América Latina. Antes, não era, a América Latina estava cindida pela cultura da guerra fria. Com os entes financeiros públicos, o BNDES, o BB e a CEF, e mais os fundos de pensão, com a estrita regulação das funções creditícias do setor bancário privado, é possível formular uma resposta estrutural ao problema crônico do financiamento do desenvolvimento brasileiro. Esta possibilidade era apenas entrevista no pré-64. Com o desenvolvimento de ilhas de excelência em tecnologia avançada, como a Petrobrás,na fabricação de aviões, em biotecnologia, e com o circuito universitário público brasileiro é possível hoje constituir um Sistema Nacional de Inovação. No período do nacional-desenvolvimentismo, a nossa base tecnológica era precária e inicial e a universidade pública brasileira não tinha formado o seu moderno sistema de pós-graduação.

Com as conquistas do SUS, da extensão da Previdência pública, da rede pública de ensino seria possível retomar a construção de um Estado do Bem Estar Social em um contexto de diminuição do desemprego e de formalização do mercado de trabalho. Superado o paradigma urbano-industrial , típico do nacional-desenvolvimentismo, seria possível pensar uma reforma do agrário brasileiro que introduzisse elementos básicos de desconcentração populacional, empregabilidade e sustentabilidade ecológica.

A elevação dos cinqüenta milhões de brasileiros, hoje situados abaixo da linha de pobreza, à condição de cidadãos plenos, possível no horizonte histórico imediato significaria, além de uma enorme incorporação produtiva, a pacificação dos surtos de violência que hoje assolam as promessas de felicidade contidas na civilização brasileira. A ampliação qualitativa dos espaços públicos de interação do Estado com o associativismo e as formas de economia solidária, hoje tão fortes e disseminados no Brasil, poderiam elevar os padrões, importantes mas ainda imperfeitos, da democracia brasileira. A incorporação massiva das mulheres no mercado de trabalho ocorrida a partir da década de setenta e no sistema educacional – hoje já são maioria no público universitário – permite pintar de lilás os sonhos de emancipação dos brasileiros. A democratização de nossa vida social tornaria vulneráveis à fraternidade as células resistentes da nossa herança escravista.

Os sintomas da angústia, da decepção, da desesperança já estão entre nós. Seria inútil e perigoso desprezá-los. Mas seria carecer de sentido histórico não identificar que o governo Lula, em seu terceiro ano de governo, já desencadeou dinâmicas inéditas e amplas que, se aprofundadas, tendem a esta imaginação republicana. O governo cuja grandeza e coragem foi capaz, desde o início, de enfrentar os poderes no mundo, na defesa da democracia na Venezuela, nas negociações da Alca, na OMC, na disputa de uma agenda mundial pela paz e pela superação da fome, alternativa ao Império, precisa exercer sua capacidade histórica de submeter os privilégios escandalosos dos poderes financeiros à soberania da democracia brasileira e às necessidades do desenvolvimento nacional.

Não se trata de reeditar aqui o “pessimismo da razão e o otimismo da vontade” para encerrar com chave de ouro um juízo crítico. Mas de professar uma razão dramaticamente otimista, isto é, reconhecer que há, no próprio diagnóstico, em nós, na nossa história, capacidade e grandeza ético-política para superar as dificuldades postas pelo situação.

Esta é a terceira tese que procuramos demonstrar. Toda esperança requer uma imaginação própria. Hoje a imaginação do Brasil criada pelo governo Lula vive um impasse republicano. Responder a estes dois desafios – o impasse da financeirização e da construção pública de uma ética política republicana - significa alargar no PT e no governo os espaços de diálogo e convergência entre a chamada esquerda partidária e o chamado centro histórico do partido. É um chamado forte pela unidade dos petistas. Ao mesmo tempo, permite ampliar as zonas de colaboração do governo e do PT com a intelectualidade democrática, a Igreja popular e os movimentos sociais do país. Significa colocar em seu devido lugar histórico – o de ser porta-voz do anti-republicanismo, do atraso e de privilégios – a oposição liberal-conservadora. Significa, sobretudo, sintonizar o governo Lula com a força vitoriosa em outubro de 2002, a irresistível esperança dos brasileiros.

Juarez Guimarães é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

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