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sexta-feira

Crônica da cidade desvairada 

Flávio Aguiar

Glosando frase do comemorado João Guimarães Rosa (50 anos de Grande Sertão: Veredas e de Corpo de Baile), pode-se dizer que em São Paulo “não há o que não haja”. É verdade: na segunda feira, 15 de maio do corrente, viveu-se um dia que não tinha ainda havido na história da cidade. Foi o dia do pânico. Algo vagamente parecido ocorreu em certo dia da década de 70 quando depois de chuvas torrenciais as represas que vizinham com a cidade ameaçavam transbordar. Ou nas épocas das informações censuradas sobre a epidemia de meningite, ao tempo da ditadura. Houve os dias da luta armada, das repressões brutais, da guerra da Maria Antônia. Houve e ainda há os dias de inundação.
Quem sabe algo parecido houve na revolta dos tenentes em julho de 1924, quando, além de combates nas ruas, aviões bombardearam bairros e parte do centro da cidade.Mas, na segunda-feira, São Paulo teve um “troço”, um colapso cardíaco, um AVC, algo desse teor e naipe. E quanto mais autoridades iam para o rádio e a TV acalmar a população, dizendo que “estava tudo sob controle” e outras quejandas bobagens, mais se via povo em pânico ou desespero nas ruas.Todas e todos que lêem esta coluna sabem que para mim verde-oliva só cai bem em azeitona, quartel e sete de setembro. Mas na segunda cheguei a desejar que o Exército viesse às ruas, porque o clima era de guerra civil. Passei a tarde na Cidade Universitária da USP, enfiado numa banca de mestrado (aliás, excelente). Pela primeira vez em meus 40 anos de universidade (desde que entrei na UFRGS como estudante) e desde que se criou a telefonia celular, participei de uma banca em que os aparelhos ficaram ligados, recebendo notícias de toda a cidade, mensagens escritas, recados de parentes e de amigos. Para meu desespero, lá pelas tantas a bateria do meu telefone se foi, e eu ainda tinha mensagens registradas de que eu ainda não tinha tomado conhecimento.Confesso que passei angústias parecidas com as do tempo da ditadura, quando a gente aguardava prisões que podiam ocorrer ou más notícias que podiam chegar a qualquer momento. Apesar de tudo levamos a banca até o final, e com galhardia, para não prejudicar o estudante, que mereceu aprovação elogiosa. Quando saí, duas palavras contraditórias entre si descreviam a cidade universitária: ela estava semideserta, e num pandemônio indescritível. Explico-me: as atividades como aulas, o funcionamento das secretarias, etc., tinham sido suspensas a partir das 16 horas. Os prédios, os estacionamentos, estavam desertos, pareciam abandonados. Já nas três saídas viárias da Cidade Universitária o congestionamento era espantoso. E vinham notícias mais espantosas: shoppings fechando, outros sendo evacuados, as marginais ganglionadas (como diria Euclides da Cunha), as avenidas com artrite ou com artrose, massas e massas humanas indo a pé para lares distantes.Só consegui sair da USP pelas 20 horas, para encontrar um cenário inusitado: ruas e avenidas relativamente às escuras, pelo apagar dos luminosos, supermercados fechados, postos de gasolina bloqueados com correntes, ruas com delegacias barricadas e ninjas mascarados com escopetas e carabinas calibre 12 à mão, nos edifícios as janelas guarnecidas por suas venezianas, enfim, um cenário de desolação. Na minha casa houve um rosário de telefonemas, os que eu dei e os que recebi, pedindo notícias. Meu irmão me ofereceu asilo no Rio Grande do Sul... e por aí foi: uma movimentada noite de noticiários, boatos e comentários.Em muitas manifestações pela imprensa falada, televisionada, internáutica e impressa, notei uma constante: uma dissociação curiosa, como se houvesse de um lado “a sociedade”, e de outro, “o crime”, “a bandidagem”, ou, para citar a expressão do governador Cláudio Lembo, “os homens de má vida” (sic). Não há possibilidade de se montar uma ação organizada como a que se montou em São Paulo sem um forte enraizamento de organizações como o PCC nessa “sociedade”. Esse enraizamento é amplo e de profundidade, pois envolve planejamento, financiamento, treinamento; não há crime organizado sem corrupção no aparato repressivo e sem seu acolhimento pelo mundo da circulação financeira, irregular ou não. A questão é pois muito complexa, e assim deve ser tratada.Ficam algumas perguntas no ar:1) Por que o governo de São Paulo rejeitou sistematicamente a ajuda federal? Timidamente, aceitou uma ajuda no plano da inteligência, coisa em que as polícias de S. Paulo revelaram rotundo fracasso.2) Se é verdade que o governo de S. Paulo sabia que algo vinha sendo preparado (e ações como as que tomaram conta da cidade desde a sexta-feira 12 exigem tempo de preparo, não se fazem de uma hora para outra), por que não preparou as polícias do estado para enfrenta-las?3) O que, afinal, foi negociado com representantes do PCC para por fim de golpe, na segunda feira, às dezenas rebeliões nos presídios do estado? Quem negociou, e em nome do que ou de quem? O governo do estado jura que não houve negociação. Mas não é possível que as rebeliões tenham acabado “espontaneamente” e sem concessões, pois visivelmente houve uma ordem para que elas chegassem a termo.Para amiga minha presente a um dos telefonemas da segunda à noite, este foi o aspecto mais acabrunhante de tudo, pois indicava que, na guerra civil, que custou, nesses quatro dias de sexta à segunda, a vida de quase 100 pessoas, houvera uma vitória das organizações criminosas. Na primeira ação de monta em alguns anos na cidade de São Paulo, elas tinham obtido uma espécie de “reconhecimento informal” pelo povo e pelas autoridades. Provocaram um “toque de recolher” virtual na maior cidade da América do Sul, desorganizaram e acuaram momentaneamente as forças policiais, e, pelo menos por hora, apesar das “baixas”, recuaram ainda intactas do ponto de vista estrutural, para a dispersão relativa que deve se seguir. O governo federal teve uma posição correta na crise, oferecendo insistentemente a ajuda sempre recusada, mas é necessário também que reveja a política de cortes de investimento na área da segurança, provocada, pelo menos em parte, pela síndrome do superávit primário, síndrome que favorece a plutocracia que agora também anda abalada pelas ruas pânicas da paulicéia, é verdade, que ficou desvairada numa segunda feira que entrou para a história da cidade.

Humor 


segunda-feira

Humor 


quarta-feira

Pensando o Programa de governo para a juventude 


Erick da Silva

O Partido dos Trabalhadores entra agora em um momento extremamente importante, que é o da discussão do nosso programa de governo para o Estado do Rio Grande do Sul. Este debate se apresenta para nós de forma bastante rica, ao levarmos em conta a nossa experiência acumulada de quatro anos de governo estadual e do Governo Lula.
Para nós da juventude este debate se inicia em condições muito mais favoráveis do que em pleitos eleitorais anteriores. O tema da juventude geralmente era tratado como uma questão secundária, sem ter a centralidade e a prioridade necessária. São muitos os fatores que colaboraram para esta situação começar a se modificar. Poderíamos destacar, por exemplo, a grave situação social da juventude. Dados do IBGE de 2001 apontam que este setor é o mais afetado pelo desemprego, com um índice superior a 18%, quando a média nacional é de pouco mais de 9%. A violência urbana atinge com muito mais intensidade a juventude, o acesso a educação é extremamente insuficiente, etc.
A juventude do PT historicamente tem lutado, junto com outros setores da esquerda, para reverter este quadro. E este debate, que por muito tempo não teve o devido retorno, começa a ter um outro olhar. A nossa experiência a frente do governo federal, em muito contribui para isto. É o Governo Lula que pela primeira vez, em nível federal, encara o tema da juventude como uma prioridade. Seja por estar desenvolvendo uma série de políticas específicas (PROJOVEM, PROUNI, Primeiro Emprego, Nossa Primeira Terra etc.), seja por ter criado um espaço institucional para o setor, através da Secretaria Nacional de Juventude.
Aqui no nosso estado, temos uma série de experiências positivas desenvolvidas no Governo Olívio (Primeiro Emprego, criação da UERGS, etc.) e em nossas administrações municipais, que devem ser resgatadas e aprimoradas para iniciarmos o debate de elaboração do programa de nosso futuro governo estadual. Mas temos de estar atentos para, ao resgatarmos os subsídios de nossas experiências em nível federal e em nível local, de ousar e lançar as bases para aprimorar e ir além. A nossa tradição política nos leva a sempre querer mais, em não nos acomodar, e é este o “espírito” que deve estar balizando a nossa intervenção. Devemos ter a capacidade de, ao mesmo tempo, darmos continuidade a políticas exitosas, e fazermos a crítica necessária para dar um “passo a mais”.
O centro para a elaboração das políticas públicas de juventude para o nosso programa de governo, bem como para a sua futura execução, é a questão da participação popular. A experiência do PT do Rio Grande do Sul, de 16 anos de administração popular em Porto Alegre, e a frente do Governo do Estado, nos demonstra de forma nítida a importância da participação popular direta nas decisões. Para um governo de esquerda, a mobilização, participação e a organização popular é o que garante a governabilidade, a transparência na gestão e nos gastos públicos, a redistribuição da renda pública a favor das camadas populares e a construção de uma outro padrão de qualidade na relação da população com o Estado, gerando um processo de conscientização política com cidadania e solidariedade. Temos de pensar mecanismos que dêem conta deste desafio, de multiplicar a participação direta da juventude.
O centro do nosso debate não pode estar na estrutura que se criará para a execução das políticas para a juventude, se será através de uma coordenadoria ou de uma secretaria, mas sim quais políticas que entendemos que devem ser executadas, com que mecanismos esperamos estar estimulando a participação e o protagonismo da juventude, de que forma estaremos revertendo o quadro de profunda exclusão social dos jovens, etc. O debate da estrutura, que é importante, tem o seu tempo político específico para tal, mas que por si só, não dá conta dos desafios que se apresentam.
Cabe a juventude do PT ter a capacidade de aprofundar o debate e ter capacidade dirigente de envolver um amplo setor de agentes e movimentos sociais capazes de dar a capilaridade e o enraizamento social que o nosso debate necessita. Assim, teremos condições de construir um programa de governo que, mais do que apresentar políticas inclusoras para a juventude, tenha uma grande capacidade de diálogo e mobilização social, respondendo aos grandes desafios que estão colocados.

Erick da Silva é Secretário de Juventude do PT de Porto Alegre

sexta-feira

Qual o papel das CPIs? 

Frei Betto

As CPIs precisam recorrer à UTI para uma cirurgia reparadora. Agem como delegacia em inquérito policial. Fulanizam denúncias de corrupção, como se meter a mão em dinheiro escuso decorresse apenas de desvios de caráter. Esquecem que a ocasião faz o ladrão, e não questionam as instituições nem a própria legislação do país, pela qual os parlamentares são responsáveis.

A exposição televisiva das CPIs fez delas uma espécie de Big Brother legislativo. O público fica de olho para ver quem vai para o paredão. Na onda do voyeurismo que assola o país, há uma perversa atração pelo espetáculo de humilhados e ofendidos por deputados que disputam a tapa as atenções da platéia de modo a angariar prestígio e votos. Prova disso é que poucos demonstram preparo para inquirir. Não investigam, não lêem relatórios, atuam movidos pelo ímpeto de destruir o partido adversário e blindar o próprio.
Uma casa legislativa não merece ser confundida com delegacia. Não condiz com a sua natureza pressionar os interrogados até que, sob tortura psicológica, passem à condição de réu. O ônus da prova cabe a quem acusa. A menos que o interrogado tome a iniciativa de admitir sua culpa, como ocorreu com vários acusados.
Não se pode reduzir a ética ao comportamento individual, como se fosse ele o único responsável pela corrupção. Há que levar em conta a teia de relações sociais e conexões institucionais configuradoras de realidade. Não basta identificar o corrupto, é preciso ir às causas da corrupção. Este o papel que distingue uma CPI de um inquérito policial.
Cabe ao Legislativo normatizar as instituições nacionais, imprimir-lhes legalidade, estabelecer seus direitos, deveres e limites, e também pesquisar as brechas na legislação que favorecem a corrupção. Como as empresas burlam o fisco e fazem caixa dois? Por que a facilidade em remeter fortunas ao exterior? O que dificulta a transparência na contabilidade dos partidos? Onde estão os furos nos financiamentos de campanhas? Por que tantas fraudes em licitações? Isso, sim, é legislar.
Uma CPI não deveria jamais encerrar seus trabalhos apresentando à nação um rol de suspeitos. Para não correr risco de falso testemunho, melhor não nomeá-los se não há provas convincentes e contundentes. Toda pessoa cuja honra é maculada levianamente em poucos minutos está fadada a passar o resto da vida tentando limpar seu nome.
Cabem ao Ministério Público e à polícia investigar, apontar e punir os que comprovadamente infringiram a lei. As CPIs deveriam sobremaneira debruçar-se sobre o desempenho do Congresso e apurar as causas da corrupção, da malversação, da quebra do decoro parlamentar. E essas causas muitas vezes deitam raízes na própria legislação que rege as nossas instituições e que mais parece um queijo suíço, tantos os buracos pelos quais se introduz a ação criminosa. E a legislação tem sua origem no Congresso. Legislar é a função precípua dos que são eleitos parlamentares.
O povo tem o direito de fazer tudo que a lei não proíbe; contudo, as autoridades só deveriam fazer o que a lei permite. É desalentador ver uma CPI desaguar num mar de ilações, quando tanto se esperava que, alertado por ela, o Congresso tomasse a si a tarefa de apressar a reforma política. O que é feito para impedir que partidos incorram novamente em maracutaias?
Desde que me entendo por gente observo que certas palavras resumem os paradigmas que mobilizam a nossa vida política. Nos anos 50/60, o tema era desenvolvimento; nos anos 70/80, democracia; nos anos 90, modernização; agora, ética.
A ética resvala para o moralismo udenista quando desvinculada da produção de sentido. Note-se que a moral tende a cair no moralismo, mas sequer existe o vocábulo "eticismo". Porque a ética, tão bem enfatizada nas obras de Aristóteles, implica princípios universais, perenes, norteadores dos grandes projetos humanos. É ela que nos fornece os elementos para o "discernimento militante", como diz Emmanuel Mounier.
Se os nossos partidos políticos perdem de vista as estratégias históricas, trocam o projeto de nação pelo de eleição, deixam de produzir sentido à nação e se tornam meros consórcios de disputa de poder, então a ética volatiliza-se na abstração dos discursos demagógicos, e os políticos resvalam para o terreno da hipocrisia. Hipócrata era o ator que, no antigo teatro grego, fazia parte do coro que proclamava o contrário do que de fato ocorria no palco.
Mais grave que a corrupção é uma eleição desancorada de consistentes projetos capazes de fazer o Brasil não ter vergonha de si mesmo, de suas crianças consumidas pelo narcotráfico, de multidão deambulando sem-terra, enfim, projetos que alterem o mais grave de nossos problemas: a desigualdade social. Não é a um candidato que o eleitor quer dar o seu voto, é à esperança.

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