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sexta-feira

Um assunto paulista 

Mauro Santayana
É muito provável – a menos que Lula abandone a sua postura altiva, e desça para o plano das acusações que fazem seus adversários – que o presidente tenha a sua votação abalada pela trapalhada de alguns de seus correligionários. Por enquanto, Lula se tem esquivado dos conselhos de amigos, para que diga o que sabe dos tucanos, principalmente dos tucanos paulistas. Ele procura preservar a imagem de José Serra, de quem é velho amigo, mas não tem tantas razões políticas e sentimentais para ficar calado contra Geraldo Alckmin. Sua alma se nega a aproveitar-se de debilidades do candidato do PSDB, porque elas envolvem a família do ex-governador. Lula tem esse cuidado.
Dificilmente ele relembraria o caso das roupas da primeira dama de São Paulo, doadas por um costureiro, o que, em tese, fez da ingênua senhora (porque se trata de um caso típico de boa fé) manequim do pequeno e esperto empresário da moda. Menos ainda, recordaria, o fato de que a filha de seu competidor foi funcionária da Sra. Tranchetti, uma espécie de vendedora especialíssima na famigerada Daslu, que, segundo o Ministério Público de São Paulo, é uma associação de sonegadores, contrabandistas e falsários. Não é da alma de Lula, como não é da alma de homens com a mesma origem no áspero chão da pobreza, tocar em assuntos que envolvam a família, nem insinuar que essas coisas não possam acontecer sem que delas tome conhecimento o chefe da família – ou o chefe de governo.
O episódio do dossiê é gravíssimo, e não adianta escondê-lo. Tive o cuidado de não escrever com a poeira nos olhos, esperando que as coisas começassem a fazer algum sentido. Mesmo assim, os fatos ainda continuam nebulosos. Várias são as hipóteses, mas, enquanto a Polícia Federal não descobrir exatamente a origem do dinheiro, todas elas necessitam de mais provas e menos indícios. O fato real é que, seja por terem caído em uma arapuca, ou por dolo real, se encontram envolvidos no episódio homens do PT. Do PT paulista, bem se entenda. Dificilmente petistas de outros Estados se meteriam em alguma coisa parecida. O núcleo sindicalista do partido – envolvido no episódio pelas relações políticas e familiares de seus protagonistas – pensa com a estreiteza dos comitês de fábrica.
A falsificação de dossiês é prática antiga, no Brasil e no mundo. Na velhíssima república, Pinheiro Machado – que foi o condestável do regime durante 15 anos – foi acusado de favorecer contrabandistas gaúchos, e reagiu com a violência própria de seu temperamento. Em 1922, Arthur Bernardes teve a sua letra e assinatura falsificadas, em carta em que estaria ofendendo o Marechal Hermes da Fonseca, o grande líder do Exército e ex-presidente da República. De tal maneira foi a orquestração contra o presidente eleito que Bernardes governou os quatro anos de seu mandato valendo-se do estado de sítio. Seu procurador de Justiça Criminal foi Sobral Pinto, que se destacaria depois na defesa dos comunistas durante o Estado Novo e no estado novíssimo da UDN, que foi o período de governos militares.
Contra Getúlio e Jango forjou-se a famosa Carta Brandi, na qual se planejava a união do trabalhismo brasileiro com o peronismo, a fim de construir “uma república sindicalista no Brasil”. Lacerda publicou o texto da carta, em seu jornal, Tribuna da Imprensa, no dia 5 de agosto de 1953 – exatamente um ano antes que – em episódio ainda não totalmente esclarecido pela História – o major Rubem Vaz, que lhe servia de escudeiro, fosse assassinado no Rio, abrindo a crise política que levaria Vargas ao suicídio. Um Inquérito Policial Militar, conduzido pelo general Emílio Maurel Filho, provou que a carta era falsa – mas nada se fez contra Lacerda, que a afirmava verdadeira e a leu da tribuna da Câmara dos Deputados.
O mais clamoroso dos dossiês brasileiros – e que possibilitou o golpe de 10 de novembro de 1937 – foi o famoso Plano Cohen, elaborado pelo então capitão Olímpio Mourão Filho, que servia no Estado Maior do Exército (27 anos depois ele chefiaria o golpe militar contra Jango). O plano, atribuído aos comunistas, previa atos de terrorismo contra políticos conservadores e contra Getúlio Vargas, com o objetivo de instaurar uma ditadura socialista no país. O nome Cohen se referia a Bela Kun, judeu que havia chefiado o breve regime comunista húngaro, em 1919, e que, na transcrição inglesa passou a ser Cohen. Soube-se depois que se tratava de um exercício de estado maior, que, prevendo uma sublevação comunista, seria combatido conforme a doutrina militar da época (já exercida em 1935, contra a Aliança Nacional Libertadora).
Isso mostra que é da tradição brasileira “melar” a vontade eleitoral, mediante falsificações. Mas nada pode indicar que, mesmo sendo tradição esse tipo de comportamento político, não haja veracidade em algumas denúncias. Em todos os casos anteriores, houve investigações rigorosas, que identificaram os falsários. É o que se espera agora. Mas – e se não houve falsidade, se as denúncias que seriam feitas, forem autênticas? Nem por isso se desculpam os que as tornaram públicas, ou pretendiam torná-las públicas. O episódio foi contra a República, trazendo tumultos em uma eleição que se vinha desenvolvendo, com excessos aqui ou ali, mas dentro da normalidade democrática.
De qualquer forma é estranho que a grande imprensa se dedique a comprometer o presidente da República no episódio e se esqueça de averiguar se as denúncias contra os tucanos têm ou não têm consistência. É possível que as fotos sejam de atos públicos normais. Comprar uma coleção de fotografias, que podem ser obtidas em qualquer banco de imagens, como dossiê de corrupção, é rematada tolice. Mas que o processo de superfaturamento de ambulâncias remonta a um passado tucano, disso parece não haver dúvidas. Sendo antigo o esquema dos sanguessugas, é preciso investigar como começou e quais foram seus criadores. A Polícia Federal, que tem agido com independência republicana, naturalmente seguirá o caminho da meada e chegará ao fuso que a fiou.
Nesse jogo de caneladas, vem o senador Jorge Bornhausen exigir que o presidente Lula prove a sua inocência, contrariando princípio imemorial de justiça que exige do acusador o ônus da prova. O senador já deu um tropeção ao falar em “raça ruim”, e escorrega de novo. Não que seu sobrenome tenha nada a ver com isso, mas esse era o princípio de justiça da Alemanha do Fuehrer: não só se exigia do acusado provar sua inocência (o que conseguiu fazer, ainda no início do regime, graças à solidariedade internacional, George Dimitrov), como as provas de nada valiam, diante da vontade dos nazistas. O processo contra Dimitrov foi a seqüela de outra e hedionda falsificação política. Para assegurar a posição do Partido Nacional Socialista, que era ainda arriscada, e justificar os plenos poderes que dele obteria, Hitler mandou incendiar o edifício do Parlamento (Bundestag) e o atribuiu a um complô de comunistas, chefiados por Dimitrov. Como se vê, o expediente, além de velho, é comum à direita.
Os romanos tinham a pergunta clássica, em atos semelhantes: cui prodest? Quem se aproveitará do crime? É claro que, se houve ou não falsificação, o escândalo tende a prejudicar Lula. Resta saber se o povão, que não morre de amores pelos tucanos, vai votar em Alckmin, porque José Serra está sendo acusado disto ou daquilo, ou porque meia dúzia de trapalhões do PT de São Paulo, por idiotice ou por dinheiro, trocaram os pés pela fuça, e acabaram prejudicando Lula e o país. O povão vive melhor, porque tem salários maiores, crédito mais fácil – e comida mais farta e mais barata nos supermercados.
A grande vantagem de Lula está nos números da economia. Como disse Delfim Neto, ao falar a empresários em Jundiaí, se os tucanos de Fernando Henrique fossem dirigentes de uma SA, iriam para a cadeia, porque venderam os ativos (na privatização) e aumentaram o passivo. O que os incomoda é que Lula possibilitou a melhoria dos assalariados, e impediu, com a bolsa-família, que milhares morressem de fome, como ocorria antes, sem tolher o crescimento da economia como um todo. Além disso, quitou a dívida com o FMI, reduziu os juros e está facilitando, com os programas do governo, a ascensão dos pobres à universidade.

quarta-feira

Não à demissão como válvula de escape 


Marcio Pochmann

Na primeira metade da década de 1950 era um sinal inegável de maturidade industrial para um país deter a produção doméstica de automóveis. No Brasil, os veículos ainda eram importados na forma de Kits completos (CDK) ou parcialmente desmontados (SKD) e remontados por empresas subsidiárias.
Para uma economia que ainda não tinha completado dez anos de domínio interno da produção de aço e com uma infra-estrutura ínfima, a idéia de constituir um parque produtivo automobilístico foi identificada, por exemplo, por membro da Ford em 1952, como uma mera utopia. Cinco anos depois, o Brasil tinha consolidado o seu programa nacional de produção automobilística, com a produção inicial de quase 31 mil veículos, em 1957. Posteriormente, a mesma estratégia de política industrial foi copiada por vários países, como Argentina e México.
Inegavelmente, a soberania nacional e a autonomia dos dirigentes de então tornaram factível ao país completar a sua industrialização, tendo por orientação a constituição de conselhos de negociação com as grandes empresas transnacionais da época (Geia – Grupo Executivo da Indústria Automobilística do governo JK). Da mesma forma, quando a recessão econômica provocada pelo governo Collor dilacerava o sistema produtivo e comprometia o tecido social, foi constituída, em 1992, a inédita câmara setorial do complexo automotivo, capaz de interromper o ciclo de demissões (de 118,3 mil empregados do setor automotivo, em 1989, para 105,4 mil, em 1992) e fazer novamente mover o moinho da produção de veículos (aumento de 29,5%) e do emprego (crescimento e 0,5%) já a partir de 1993.
Agora, novamente encontra-se em dificuldades a manutenção do nível de emprego no setor automobilístico. Enganam-se, novamente, os liberais-conservadores de sempre, que tratam da situação da corporação Volkswagen como algo natural, resultante da globalização e da inflexão dos trabalhadores. Não parece desprezível relembrar que a produção do primeiro veículo produzido pela Volks no Brasil, em 1957 dependeu da concessão do empréstimo no valor de 150 milhões de cruzeiros do BNDES. Tudo isso, sem falar nas várias decisões de política econômica favoráveis ao estímulo do setor automobilístico no país. A questão da produção da Volks e do emprego dos trabalhadores não deve ficar restrita à simples negociação bipartite, assim como se encontra em curso ainda a situação da Varig. Por serem grandes corporações de âmbito mundial, necessitam, inexoravelmente, de tratamento à altura, especialmente num país da periferia do capitalismo global.
O Brasil precisa urgentemente de duas inovações em termos de intervenção pública. De um lado, a implementação de uma regulação apropriada à defesa da produção no seu espaço nacional. Dessa forma, o governo federal poderia lançar mão inteligente e imediata de recursos favoráveis ao atendimento de uma agenda ampla de negociação nacional dos interesses do setor produtivo (câmbio, tributo, juro, tecnologia, entre outros), conforme a experiência de vários países, sobretudo os asiáticos. De outro lado, caberia a provação de uma legislação adequada que permitisse diferenciar a simples demissão individual do empregado de uma demissão de natureza coletiva de trabalhadores. A experiência italiana do Fundo de Integração de Salário avança muito neste sentido, uma vez que busca considerar medidas ativas com objetivos distintos.
No caso do trabalhador individualmente demitido, há o sistema público de emprego (intermediação, seguro desemprego e qualificação profissional) que pode conceder atenção devida, mesmo que no caso brasileiro seja necessário avançar muito. Mas para a demissão em grande escala, geralmente por motivo econômico ou tecnológico, não há tratamento diferenciado. Nesse caso, não necessariamente precisaria haver rompimento do contrato de trabalho, caso houvesse medida decente de garantia de intervenção pública. É claro que qualquer demissão representa um sofrimento humano injusto, embora ele termine sendo praticamente irreparável quando ocorre em grande dimensão, sobretudo no plano local.
O caso atual da Volks pode ser uma excelente oportunidade para o Brasil avançar no enfrentamento das distintas situações de incerteza patronal e insegurança do trabalhador. Para isso, não cabe deixá-lo circunscrito ao âmbito da negociação bipartite, pois é fundamental conceder a dimensão que ele merece, o que seria inicial a construção de uma câmara setorial do setor automobilístico. Em seguida, a formulação das duas inovações no campo da intervenção pública, tanto no plano da defesa da produção nacional como no tratamento especial da demissão coletiva.
Com a palavra, os políticos e os gestores públicos de plantão.

segunda-feira

Um lead para Heloísa Helena 

Gilson Caroni Filho


Não há dúvida. A grande imprensa entrou firme na campanha eleitoral. As pautas não comportam qualquer investigação contra supostas irregularidades cometidas pelo candidato tucano ou seus aliados. Quem se dispuser a um exercício de comparação que leia as folhas em 2002. Àquela época, por fracionamentos conjunturais que não cabem neste artigo, tivemos, talvez, a melhor cobertura de uma eleição presidencial no país. O que assistimos, agora, é a retomada do padrão usual dos pleitos de 1989, 94 e 98.
A novidade é a clareza da aliança dos grandes veículos. Ou quem sabe sua amplitude. Deixando de lado eventuais divergências, a coligação Folha-Globo-Estado de S.Paulo- Jornal do Brasil dá ao analista atento a certeza de que o jornalismo é uma atividade secundária, quando não ocasional, nos grandes conglomerados de mídia. A desconstrução da imagem do governo é tarefa imperativa. Nunca a hegemonia de classe se fez tão nítida no interior do campo jornalístico. A informação é um penduricalho tático, nada mais.
É nesse marco que se dá uma operação interessante. A blindagem do bloco liberal-conservador vem acompanhada de um destaque inusual a uma candidata que, supostamente, representaria a nova esquerda. Ambos se complementam em seus fins últimos. Heloísa Helena dá à imprensa a fachada de um falso pluralismo. Em troca, recebe um recorte simbólico que a torna palatável a expressivos setores de classe média. É o que podemos chamar de legitimação recíproca. Os dividendos são imediatos para as duas partes.

Esquerda desejável

Há quem veja autenticidade em simulações estudadas. Firmeza de convicções em ataques pessoais. E diferencial ético em linguagem vulgar. Para estes, a grande novidade nas próximas eleições é a candidata do PSOL à presidência da República. Apresentada como alternativa à polarização entre PT e PSDB, a senadora tem mostrado uma determinação invejável. O manifesto da Frente de Esquerda (PSOL-PSTU-PCB) é taxativo:
"O povo brasileiro não pode ser condenado a escolher entre Lula e Alckmin, dois candidatos que defendem o mesmo programa neoliberal, a mesma prática política marcada pela corrupção que impera no Congresso Nacional e no Governo. A candidatura de Heloísa Helena é uma alternativa real para o povo brasileiro contra estes dois candidatos apoiados pelos banqueiros. A Frente de Esquerda quer libertar o país das garras do capital financeiro e do imperialismo."
São palavras fortes, de indiscutível contundência ideológica, e que sinalizam para uma candidatura capaz de aglutinar os descontentes com os rumos da política brasileira. É o que supostamente restou de ético de uma esquerda carcomida. O que sobrou incólume após o desmoronamento de uma estrutura de compra de parlamentares e solapamento das instituições do Estado. Distintos cidadãos, parece dizer o documento, o sonho não acabou. Ele ressurge desde o Quilombo dos Palmares anunciando que "é preciso ousar, é preciso criar o novo, o novo é a frente de esquerda". Será? Ou estaremos vislumbrando uma farsa diversionista, docemente embalada por articulistas conservadores e lideranças políticas de direita?
O comportamento errático da imprensa já não deixa dúvidas. Os principais colunistas de O Globo, Folha de S. Paulo, Estadão e JB "adotaram" HH como referencial de uma esquerda desejável. O padrão operacional parece se repetir em todos os veículos. Abrem-se espaços para a grita moralista da candidata ao preço de desqualificar o conteúdo programático do partido. Um pacto faustiano que une o esquerdismo inconseqüente a uma mídia em campanha.

Ideologia de autoridade


Os cálculos políticos de candidatos estão na matriz narrativa que elaboram. O universo simbólico do eleitorado deve estar em consonância perfeita com o discurso. Clivagens de renda e ocupação sempre são levadas em conta. Peculiaridades socioculturais não são ignoradas. A maior ou menor importância atribuída pelos eleitores aos partidos políticos é vital para a estratégia discursiva adotada. Sendo assim, para quem fala Heloísa Helena? O que prevalece em suas intervenções? A marcação de diferença entre sua candidatura e a de Lula, por exemplo, é construída a partir de quê? De um debate ideológico de fundo ou de considerações meramente moralistas?
No primeiro caso temos uma ação pedagógica no campo democrático-popular. No segundo, apesar das intenções da Frente de Esquerda, há uma recorrência discursiva bem ao gosto da direita. E dos editores da pluralidade.
Quando questões políticas são redutíveis a qualidades pessoais ou deformações de caráter a grande beneficiária é a direita. Como destacou Flávio Aguiar, o eterno moralismo que divide a cena política em "bons" e "maus" administradores, e assim "naturaliza" as diferenças políticas dos projetos, trabalha sempre a favor daqueles que nada querem mudar.
Nesse caso, Heloísa Helena fala principalmente aos que "no vale-tudo são capazes, de matar, mentir, caluniar". Fala à parcela moralista e autoritária da classe média urbana brasileira. Aos que oscilam entre a dominação arcaica e o anseio pelo moderno. Aos que procuram ocultar a ideologia de autoridade que norteia sua práxis pela modernidade de alguns engajamentos. Provavelmente, quando jovens, participaram de lutas feministas, movimentos contra o regime militar e manifestações contra o racismo. Isso, no entanto, não elimina os traços ideológicos mais fortes que marcam esse extrato: a recusa da cidadania plena, a incapacidade de distinguir entre o público e o privado e a crença no recurso à força como garantidor da ordem.

Despolitização deplorável


Destaque-se, aqui, que isso perpassa, mas não condiciona, sua opção partidária. Tanto pode jogar com o PSDB como apostar no PSOL. O imperativo é que a semântica da Casa Grande permaneça hegemônica. E isso a senadora alagoana assegura com destemperos calculados. O ranço autoritário e preconceituoso nada de braçada em suas declarações:
"Tenho muitos defeitos para que ele precise usar da mentira para me atingir. Mas não vou bater boca com os empregadinhos ministros do presidente Lula, prefiro esperar para bater boca com o patrão deles.
"Tarso não tem o que fazer porque o governo é incompetente. Não vou bater boca com moleque de recado do presidente. Ele que vá arranjar um trabalho para fazer e me tirar da cabeça dele porque está com idéia fixa com Heloisinha."
De fato, tais afirmações, extraídas da Folha de S. Paulo, mas publicadas por toda a grande imprensa, soam como música para os segmentos mais reacionários da sociedade brasileira. Poucas vezes o exotismo pueril se apresentou com tanta radicalidade. O que Heloísa teme é o debate programático. Sabe que se for explícita poderá perder parte da direita que lhe dá sustentação. Irônico o destino de um partido que serve como linha-auxiliar da direita. Mal nasceu e o PSOl precisa ser eclipsado por sua candidata. Propala a vontade de debater na televisão por saber que o tempo da mídia não permite aprofundamento de idéias. Está certa quando antevê que será poupada por Alckmin (PSDB) e Buarque (PDT). Sabe que sua peroração udenista não sofrerá apartes. Saberá utilizar, sempre que necessário, recursos de gênero.
Há algum tempo, a senadora Ideli Salvatti (PT-SC) já havia alertado para o lado cênico de HH. "Acho que tudo o que faz é milimetricamente estudado. Das roupinhas simplesinhas a postergar seus discursos para aparecer ao vivo na hora dos jornais noturnos e até levar uma sobrinha para ficar desenhando no plenário."
De fato, a senadora já aprendeu métodos de representação. Criou o personagem, montou o figurino e produziu o cabelo. Vive enclausurada num roteiro em que não cabe falar em classes, movimentos sociais e projetos políticos. A estrutura de dominação só comporta, em sua narrativa, categorias como "patifes", "ordinários" e "inescrupulosos". É uma estratégia discursiva que lhe traz dividendos eleitorais, mas ao preço de uma despolitização deplorável. Os mais jovens devem ficar atentos. Há farsas que custam caro. E todas elas são avalizadas pelos jornalões.

domingo

Dos usos do moralismo 




Luis Fernando Verissimo
Espera-se honestidade e ética de qualquer governante ou pessoa pública - ou motorista, médico ou manicure. Um comportamento moral generalizado é um requisito mínimo para a convivência, com ligeiros ajustes para a hipocrisia e a mentira social. Mas, como tudo na vida, o conceito de moral é relativo. Uma questão de perspectiva. Você pode viver no país mais imoral do mundo, nascer e viver em meio à injustiça mais obscena e à miséria mais pornográfica, sem se dar conta disso - e se escandalizar com cenas de sexo na TV. A imoralidade endêmica brasileira nem exige que a gente viva em permanente estado de indignação, o que até impossibilitaria a vida, nem absolve imoralidades menores ao ponto de nada nos indignar. Mas é um pano de fundo contra o qual se estudar os usos e desusos, entre nós, do moralismo, essa outra coisa relativa que depende da perspectiva. O objetivo do moralismo não é, necessariamente, a moralidade. Como o colesterol, existe moralismo ruim e moralismo bom, com efeitos diferentes no organismo nacional, com perdão da metáfora médica prolongada. O moralismo pode ser um mau conselheiro político. Já foi em muitos momentos da nossa história. Ajudou a eleger o Jânio Quadros, que iria varrer toda a sujeira deixada pelo governo do Juscelino, e cuja renúncia inaugurou um dos piores períodos da nossa vida institucional. Culminando com o golpe militar de 64, que também nasceu do moralismo, ou da cooptação de valores cristãos ameaçados pelo demônio vermelho. Foi o moralismo que elegeu o Collor, para acabar com a pouca vergonha dos marajás do serviço público. O moralismo mal usado tem um prontuário quase maior do que o da corrupção na História desses últimos 60 anos. O bom moralismo é um traço reincidente e surpreendente no eleitorado de um país que gosta de se autocaracterizar como a terra do jeitinho e da malandragem. O pior moralismo é o oportunista, para uso de acordo com a conveniência política. O fato de as denúncias de corrupção do governo Lula não estarem, aparentemente, afetando o julgamento da maioria dos eleitores, sugere uma de duas coisas, dois pontos. Ou o moralismo já não tem o poder político que tinha nas nossas eleições (suspiros de alívio ou de decepção à vontade), ou os eleitores declarados do Lula estão sabendo distinguir o moralismo de ocasião, cujo objetivo é tudo menos a moralidade, do moralismo legítimo. Ou, claro, estão votando contra a imoralidade maior.

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