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quinta-feira

Em defesa da política e da democracia 

Marco Aurélio Weissheimer
Se a ficha ainda não caiu, atenção! Há fortes e crescentes indícios de que está crescendo na sociedade brasileira um movimento subterrâneo (ou nem tão subterrâneo assim) profundamente autoritário que, sob o manto de um discurso de indignação moral, mal consegue disfarçar seu desprezo pela política e pela democracia. Um comercial veiculado pela MTV resume bem o ideário desse movimento. O texto diz: “Vêm aí as eleições. Cuidado! De um lado, o governo sujo pela corrupção, pela hipocrisia que contamina os novos ricos e velhas raposas no poder. De outro uma oposição pensando que todo mundo é idiota e não se lembra do que fizeram quando estavam no governo e nem de suas responsabilidades por zonas de caos em que estamos metidos. No meio de tudo isso, uma campanha inútil e marqueteira com candidatos se atacando e lançando bravatas em busca de votos cordeirinhos. Você vai ficar de que lado? A MTV te dá uma dica: prepare seu saco, os ovos e os tomates”. A conjugação desse texto com as imagens poderia muito bem servir como um comercial de lançamento de um novo movimento fascista.Exagero? Vejamos o que diz exatamente o comercial da MTV, com perdão pelo didatismo. No momento em que certos limites parecem estar sendo ultrapassados, é bom começar a chamar as coisas pelo nome. Em primeiro lugar, uma advertência para a ameaça que as eleições representam. É preciso tomar cuidado, algo que merece ovos e tomates vai começar: a campanha eleitoral. Um processo inútil e mentiroso. Não há qualquer ambigüidade ou ironia na mensagem. O que está sendo dito é isso mesmo. E ninguém escapa da acusação: nem governo, nem oposição. Toda a política é jogada na vala comum da mentira e da inutilidade. Ora, se é assim, para que eleição? Abandonemos a idéia de representação política, de participação da população no processo político. A única forma de enfrentar os problemas da mentira e da corrupção na política seria assim, dissolvendo a própria política. Nada de partidos, nada de candidatos, nada de debate nos meios de comunicação. Ovos e tomates neles! E o que será colocado no lugar disso?
Tomates e ovos. Por que não pedras e tiros?
Ao falar do objetivo do comercial dedicado às eleições deste ano, o diretor de programação da MTV, Zico Góes, disse à Folha de São Paulo, que “a gente não está convidando ninguém a agredir os políticos. A gente só quer que o jovem fique indignado”. É difícil dizer o que é mais assustador: a falsidade ou a banalidade da declaração. Em primeiro lugar, não é verdade que o comercial não está convidando a agredir os políticos. É exatamente isso o que faz. Em segundo, quem é exatamente “a gente”? Quem está convidando? Ao que parece é a direção da MTV. Ela resolveu, então, desencadear uma campanha em defesa do fascismo e contra a democracia, destinada aos jovens? É isso? Outra pergunta singela: quer despertar indignação em relação ao que mesmo? Os recentes acontecimentos da política nacional recomendam uma rejeição total aos políticos envolvidos em esquemas de corrupção. Em qualquer regime democrático, a melhor maneira de fazer isso é através do voto. Ora, se qualificamos o processo eleitoral como algo mentiroso e inútil, como a população poderá materializar sua indignação? Tomates e ovos? Por que não pedras e tiros? Fechemos logo o Congresso e os parlamentos estaduais e municipais, então.
O referido comercial faz um diagnóstico devastador dos políticos, da campanha eleitoral e da atividade política. Mas, aparentemente, a julgar pelas palavras do diretor de programação da MTV, não leva em conta as possíveis conseqüências desse discurso, não para este ou aquele político corrupto, mas para a própria idéia de democracia. Reside aí a banalidade da declaração. A idéia é “que o jovem fique indignado”. Com a democracia e o processo eleitoral? Pois é isso o que está sendo dito em alto e bom tom. Não custa lembrar que a história da democracia no Brasil é marcada por uma série de interrupções autoritárias, quando os políticos foram acusados de serem todos corruptos e incapazes de ajudar a resolver os problemas do país. Em todas essas interrupções, as eleições foram primeiro desqualificadas e depois suspensas. A mais recente delas ainda é muito recente para que seja esquecida. Assim, colocar os políticos e as eleições na sarjeta e sugerir que recebam ovos e tomates não é exatamente uma mensagem original. Mas há um agravante no caso da MTV: a banalidade com que isso é dito e defendido como se fosse uma peça publicitária qualquer.
O Estado é o inimigo?
Alguém poderá considerar tudo o que foi dito acima como um exagero, afinal de contas trata-se apenas de um comercial. Sem entrar no mérito do debate sobre o sentido deste “apenas um comercial”, é preciso destacar que não se trata de um caso isolado. Nos últimos meses, vem crescendo na internet e fora dela manifestações em defesa do voto nulo, movimentos que qualificam a atividade política como uma “coisa suja” e os políticos como seres que deveriam ser varridos do mapa. Dias atrás, uma importante professora da Faculdade de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul concedeu uma entrevista ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre, onde disse estar enojada da política e disposta a fazer uma campanha pelo voto nulo junto aos seus amigos e conhecidos. Que uma professora de História - que certamente conhece a frágil história da democracia brasileira - diga isso já é motivo de espanto. Mas o furo é mais embaixo: manifestações como essa vem se repetindo pela mídia, repetindo, com algumas variações, um mesmo mantra: os políticos não prestam, a política é uma coisa suja, o Estado e os seus agentes são o inimigo a ser enfrentado.
O jornalista Clóvis Rossi, articulista da Folha de São Paulo, destaca em sua coluna de 16 de agosto, intitulada “Delinqüente é o Estado”, um trabalho de André Moysés Gaio, mestre em ciência política e doutor em história social, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Intitulado “O Estado é delinqüente”, o trabalho “apresenta a noção de Estado delinqüente para explicar uma modalidade de crime que conta com a iniciativa e a liderança dos agentes públicos”. Não é que os agentes públicos se corrompam facilmente no Brasil, diz Rossi. “É pior: eles tomam a iniciativa, lideram o saque aos bens públicos”. É inegável que a corrupção é um grave problema a ser resolvido no país e que o Estado e o sistema político estão exigindo um choque de democracia. Mas não é possível esquecer ou diminuir que são aparelhos do Estado, como a Polícia Federal e o Ministério Público, que vêm denunciando e prendendo, como nunca antes na história da República, servidores públicos dos mais variados escalões. Mas a questão central não é essa. O que esse discurso do “Estado delinqüente” oculta, entre outras coisas, é a delinqüência do setor privado. Afinal de contas, onde há um corrompido há um corruptor que, na esmagadora maioria das vezes, está no setor privado. Não parece que o debate sobre quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha, seja o caminho para a superação do problema.
A solução é mais democracia e não menos
Há anos, um grupo de renomados juristas internacionais reúne-se para debater novas formas de combater a lavagem de dinheiro e o crime organizado em todo o mundo. Uma de suas conclusões aponta para uma forte conexão entre o crime organizado e o sistema financeiro internacional. Não há tráfico sem lavagem de dinheiro e não há lavagem de dinheiro sem a participação do sistema financeiro. No entanto, por alguma razão, essa conexão, é muito pouco divulgada e debatida na grande mídia. Particularmente, no caso brasileiro, o Estado e a política são apresentados como os grandes vilões. Serão mesmo? Um possível caminho para tentar elucidar essa dúvida é apostar em mais democracia e não em menos. Há muita gente que anda desencantada com a política e que argumenta que não vem adiantando grande coisa votar. Esse diagnóstico é revelador de duas coisas. A primeira sugere que um sistema democrático não sobrevive se os cidadãos limitarem sua participação ao ato de votar. Se é assim, participar das eleições, manifestar sua indignação ou aprovação através do voto, é uma condição necessária mas não suficiente para a democracia. Se é razoável definir a corrupção como a apropriação do espaço público e do Estado por interesses privados, a forma de combatê-la é democratizar o espaço público e o Estado, o que exige uma participação mais ativa da cidadania, uma participação que não se esgota no ato de votar.
A questão central aqui não é propriamente o tema do voto nulo. Alguém pode querer anular seu voto em uma determinada eleição e não ser contra o processo eleitoral e a democracia. O problema é que essa fronteira, às vezes, pode assumir um caráter nebuloso, criando um caldo de cultura para a proliferação de discursos autoritários e fascistas que têm como alvo a própria idéia de democracia. A história já nos ensinou que, não raras vezes, o autoritarismo e o totalitarismo andam de mãos dadas com a banalidade. Hannah Arendt cantou essa pedra em obras como “Eichmann em Jerusalém” (Companhia das Letras, 1999) e “Origens do Totalitarismo” (Companhia das Letras, 1989). Ao comentar o julgamento do criminoso nazista Eichmann, Arendt afastou a hipótese de que ele fosse um monstro, um sádico, ou um carrasco, descrevendo-o como alguém caracterizado por uma “terrificante superficialidade”, como um indivíduo banal. Não temos nenhum Eichmann entre nós, pelo menos que se saiba. Mas alguns sintomas recentes recomendam uma forte atenção para o risco da banalidade. Se começamos a achar normal que devemos despertar a indignação dos jovens, mostrando que a política e o processo eleitoral são coisas mentirosas e inúteis, as sementes da banalidade, do mal e do autoritarismo encontrarão um fértil terreno para florescer.

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