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quarta-feira

A verdade das manchetes 

Flávio Aguiar - Carta Maior
Os grandes jornais paulistanos vêm exercendo com regularidade a função de exporem ao público leitor ora o conservadorismo exasperante, ora o conservadorismo exasperado. Seu exercício é eqüitativo, distribuído igualmente pelos editoriais, colunistas, manchetes, sobretudo as de capa, e até na redação das reportagens. E os jornais trocam de função entre si, pondo em evidência alternadamente ora o que exaspera, ora o que é exasperado.
Por dever de ofício, assino um deles, que me dá a dose diária e matutina de exasperação, de que já devo estar até quimiodependente. Em todo caso, isso me salva das doses cavalares de exasperação que me dariam as revistas semanais, quando então eu poderia morrer por overdose de desespero, e meu e o alheio.
Essa dose menor, mas constante, da exasperação ora me deixa de bom humor, quando devo estar na fase eufórica, por me divertir com a aflição dos outros; ora me deixa sem humor, quando devo estar na fase deprê, exasperado com a falta de senso ou até de elegância dos escritos, alguns histéricos, da nossa direita em ação. Confesso, com sentimento masoca, que tenho crises de saudade dos artigos de Gustavo Corção, que eu lia no “Correio do Povo”, em Porto Alegre, em que o ilustre escritor católico defendia todas as causas de direita, inclusive o golpe de 1964. Não sabia o que me exasperava mais, se a defesa de tudo o que era reacionário, ou se a elegância e a qualidade do estilo de Corção, com quem, confesso humildemente, também aprendi a ler e a escrever.Como devo ter realmente algum cromossomo voltado para o meu mal, diariamente examino em alguma banca as manchetes e a capa do outro jornal, o que não assino, para ver se o compro ou não. Nem sempre isso é interessante, porque eles vão ficando muito parecidos do ponto de vista de reportagens e manchetes, apesar dos colunistas de um preferirem um conservadorismo claramente modernoso, enquanto os do outro advogam uma modernidade decididamente conservadora.Mas no sábado, 18 de março de 2006, achei uma manchete original no jornal que busco nas bancas, cuja gravidade me chamou a atenção. Dizia ela: “Reforma agrária acelera desmatamento na Amazônia”. Opa, eu pensei, isso é muito grave. Se assim for, terei de rever meu apoio incondicional à reforma agrária em curso. Comprado o jornal, os dizeres debaixo da manchete me deixaram em dúvida, pois assinalavam que o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) afirmava que “até 2004” os assentamentos do Incra eram responsáveis por 15% do desmatamento na Amazônia Legal. Nenhuma frase sobre os outros 85%; além disso, pensei, “15%” não acelera nem desacelera. E mais: logo depois vinha uma frase dizendo que o coordenador de Meio Ambiente do Incra declarava que neste ano o Instituto teria R$ 26 milhões para aplicar em recuperação ambiental.Buenas, continuei pensando, hábito velho que tenho, vamos à página interna. Meu susto foi maior: “Assentamentos derrubam a floresta” era a manchete. Cáspite!, gritei de mim para mim. Estamos perdidos! Aquele “a”, artigo definido, universalizava a ameaça para toda a Amazônia, prestes a ser derrubada pelas enxadas dos assentados. Não era parte da floresta, nem do ecossistema, etc. Não! Era a Amazônia inteira que caía ante a sanha desabrida da reforma agrária! Havia, nos gráficos e mapas apresentados, uma ligeira contradição sobre se os tais de 15% do desmatamento se referiam a um período que ia até 2002, antes do começo do governo Lula, ou até 2004, já em pleno governo dele, mas isso, pensei, deve ser quezília minha, hábito também antigo, o de buscar rigor, precisão e investigação comprobatória nas denúncias. Hoje em dia, continuei pensando, com estas CPIs finis mundi e com os novos hábitos da imprensa de atirar para todo o lado e depois buscar provas, aliás, freqüentemente declaradas desnecessárias, tanto faz falar de 2002 ou de 2004. O importante é obter a manchete. Ela é a prova que prova a si mesma, mesmo que não tenha sustentação – já não digo nos fatos, mas sequer na matéria.Esta enveredava por caminhos que semeavam dúvidas. O coordenador do estudo do Imazon dizia que era impossível afirmar que todo o desmatamento tivesse sido causado pelo assentamento de colonos, porque parte dos dados recolhidos era de informações obtidas por satélite a partir de 1997. Ou seja: pode ser que os assentamentos tivessem sido feitos em áreas já desmatadas. Mas prosseguia a matéria, e aqui vale a pena recorrer à citação para não incorrer em possível distorção:“Ainda assim, os dados confirmam uma impressão disseminada de que os assentamentos da reforma agrária também têm um papel significativo na destruição da floresta – ainda que muito menos do que o dos latifúndios de soja e gado. Isso, sem contar o desmatamento praticado por invasores e outros pequenos agricultores em áreas não homologadas pelo Incra”.
De propósito não grifei nada no parágrafo citado: confio na inteligência dos leitores e leitoras, costume também já idoso que tenho e prezo. Mas assinalo que, problemas à parte, a base das manchetes assinaladas era “uma impressão disseminada”. De todo modo, o estudo apontava um problema, afirmando que “a maior parte” dos assentamentos tinha sido feita em áreas de cobertura florestal, e que o percentual de floresta entre 1997 e 2004 tinha caído de 76% para 66%. Buenas, continuei pensando a sós com meu mate, isso é de fato um problema. Mas vai ver que o fato dos assentamentos terem sido feitos em áreas de floresta tenha a ver com a quantidade de terras devolutas, isto é, do Estado, na região, em comparação com áreas indevidamente deflorestadas pelo avanço das grandes plantações monoculturais ou de criação de gado, mas que permanecem inutilizáveis para fins de reforma agrária pela antigüidade da legislação que declara uma propriedade como improdutiva, que hoje deveria incluir o conceito de “produção negativa”, isto é, se o seu método de produção gera mais malefícios que exigem investimentos públicos compensatórios do que benefícios para a sociedade. Isso deveria ser investigado, pensei. Procurei sinais de investigação na matéria: necas de pitibiribas. Deve ser besteira minha, pensei. No jornalismo moderno não se fazem perguntas correlatas, vai ver que é isso, e que sou de uma escola antiga. E vejam o tamanho da frase que tive de escrever para levantar a área de investigação! No jornalismo conservador hodierno tal tamanho de frase, cheia de orações subordinadas, é impensável. Esse jornalismo proclamou sua independência, a da autonomia do texto: subordinados, só os espíritos; jamais as orações! E eu dispunha apenas da pergunta. Para obter respostas, eu teria de ir atrás de quem estudou a questão. E provavelmente obteria respostas diferentes, de pessoas diferentes! E iria ao encontro de novas perguntas que eu, como leigo no assunto, não fui capaz de pensar! Nossa! Quantas orações subordinadas eu teria de escrever para reportar tudo isso! Bofé! Para o jornalista pós-moderno, de espírito macunaímico (Ai! Que preguiça!) é melhor sair logo desancando o governo e a reforma agrária na manchete, ao invés de pedir novas matérias. Os patrões ficam contentes e o expediente termina mais cedo.
Entretanto, medindo-se a área ocupada pela matéria no jornal, via-se que dois terços dela era ocupada por declarações daquele coordenador de Meio Ambiente do Incra, Marco Aurélio Pavarino. Dizia ele a seguir que a concepção de assentamento tinha mudado desde 2001. Olha só, me observou o pensamento, não é alguém que algum conservador pudesse acusar de estar fazendo uma defesa doentia do atual governo.
Prosseguia o coordenador dizendo que essa mudança tinha ocorrido a partir da introdução de conceitos sobre “o aproveitamento sustentável da floresta”. Já em 2005, 75% dos novos assentamentos feitos obedecia essa nova concepção mais sofisticada, exigindo inclusive o licenciamento ambiental dado por órgão estaduais, portanto, fora do âmbito federal. E que em 2006 há o tal de financiamento de 26 milhões para recuperação ambiental, o que é inteira novidade, segundo ele, que ressalta não ser essa verba “suficiente para tudo”, embora aponte para “o começo de uma nova visão sobre o impacto ambiental dos assentamentos”.
O restante da matéria é ocupado por declarações de Evaristo Miranda, chefe da Embrapa Monitoramento por Satélite, falando da história de um assentamento que ele acompanha há 20 anos, onde houve gente que deu certo e gente que não deu. Diz ele ainda que a preservação da floresta é garantida por uma área de reserva legal comum, nos fundos de cada lote, (que deve ocupar 80% da área para ter licenciamento ambiental). E que este é o modelo “defendido atualmente” pelo Incra.Depois de ler a matéria, fiquei pensando que a manchete deveria ser “AÇÃO DO INCRA ACELERA REFLORESTAMENTO NA AMAZÔNIA”. E que deveria haver olhos e manchetes internas ressaltando a mudança conceitual, e a quantidade de trabalho que ainda resta planejar para que a situação de desmatamento seja revertida de modo sustentável. Mas em lugar disso, na matéria havia um único olho: “Em 7 anos assentamentos destruíram 10% da mata remanescente”.O pior de tudo é que eu não soube dirimir minha dúvida sobre serem tais olhos e manchetes frutos do conservadorismo exasperante ou do exasperado, matéria com que o pensamento me azucrinou a paciência pelo resto do dia.

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