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quinta-feira

Bom dia, crise! 

Marco Aurélio Weissheimer

“A luta continua, mas quase nunca no mesmo lugar ou em torno do mesmo significado ou valor” (1). A frase do jamaicano Stuart Hall, intelectual engajado nos debates sobre as dimensões político-culturais da globalização, pode servir de ponto de partida para uma reflexão sobre o sentido da crise política que atingiu o PT e o governo Lula, com desdobramentos para a esquerda de um modo geral. A narrativa que vem sendo construída até aqui é a da tragédia, do desencanto e da desilusão. No entanto, ao contrário do que pode parecer, essa crise representa uma oportunidade extraordinária para a esquerda. Para isso, porém, impõe-se como tarefa neste momento superar a narrativa do desencanto, olhando para a crise de frente a aprendendo suas lições. Em um mundo onde a morte avança, aprender também é lutar pela vida. E essa luta é cada vez mais necessária diante da progressiva deterioração social, ambiental e cultural que ameaça o planeta. É justamente neste momento que se torna mais necessário lembrar alguns dados objetivos sobre como avança essa deterioração. O relatório 2005 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) é uma ótima fonte para isso. Os números são estarrecedores e mostram, como disse recentemente Raul Pont, que a desistência não é uma opção. Vamos a eles, pois. As 500 pessoas mais ricas do mundo têm uma renda total superior ao conjunto de 416 milhões de habitantes mais pobres do planeta. Isso quer dizer que a renda de um desses bilionários é equivalente aos recursos de que dispõem 820 mil pessoas. Se o mundo fosse considerado como um único país, seu nível de desigualdade só seria inferior ao da Namíbia, país que possui o maior índice de desigualdade do planeta. Segundo a ONU, o índice de desigualdade do “país-mundo” seria de 67 pontos (em uma escala que vai de zero a cem), contra 70,7 pontos do país africano. Ainda segundo o levantamento do Pnud, uma criança que nascer neste ano em um país como a Zâmbia, por exemplo, terá as mesmas chances de chegar aos 30 anos de idade do que tinha um habitante da Inglaterra em 1840. Neste estudo, o Brasil aparece como um dos países mais desiguais e injustos do planeta. É o sexto mais pobre do mundo e o oitavo mais desigual. Embora o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) tenha melhorado um pouco (subiu de 0,790 para 0,792), só em cinco países os 10% mais pobres ficam com uma parcela de renda menor que a dos brasileiros miseráveis: Venezuela, Paraguai, Serra Leoa, Lesoto e Namíbia. No terreno da desigualdade social, estamos “na frente” apenas de Guatemala, Suazilândia, República Centro-Africana, Serra Leoa, Botsuana, Lesoto e Namíbia. No Brasil, 46,9% da renda nacional concentram-se nas mãos dos 10% mais ricos. Os 10% mais pobres ficam com apenas 0,7%. Outro dado eloqüente: para cada dólar investido em ajuda humanitária, os países destinam dez para seus orçamentos militares. Os países mais ricos do planeta, que integram o Grupo dos Sete (G7), destinam pelo menos quatro vezes mais dinheiro para despesas militares do que para ajuda humanitária. No caso dos Estados Unidos, essa proporção é 25 vezes maior. A situação é ainda mais grave. O dinheiro que os países ricos dedicam por ano à luta contra a Aids – que mata três milhões de pessoas anualmente – representa os gastos de apenas três dias em armamento. Segundo a avaliação do Pnud, qualquer avaliação das ameaças à vida humana reflete uma “assimetria notável” entre o orçamento militar e as necessidades das pessoas. Entre 2000 e 2003, esses países registraram um aumento de US$ 118 bilhões nas despesas militares. Com apenas 3% desse valor (cerca de U$ 4 bilhões) seria possível evitar a morte de 3 milhões de crianças por ano.

Genocídio social e colapso ambiental

Ou seja, 3 milhões de crianças poderiam não morrer se uma pequena parte dos gastos militares fosse destinada para o combate à fome e à pobreza. Esses números não são exatamente novos e, a cada ano, são publicados de forma rotineira pela imprensa. As mesmas manchetes se sucedem durante um ou dois dias e o assunto cai no esquecimento, como se fosse um fenômeno natural inevitável. Nunca é demais lembrar que não se trata de uma obra da natureza e sim dos homens que governam o mundo. Quem são os responsáveis por esse genocídio social que se desenrola sobre o olhar cúmplice de todos nós? Os ideólogos do sistema capitalista mundial, de Nova York a Passo Fundo, não se cansam de lembrar os erros e fracassos de experiências que tentaram romper com esse modelo. Erros - que descambaram algumas vezes em crimes - e fracassos reais da esquerda, é importante reconhecer. Mas tratam os seus erros e crimes como se não lhes dissessem respeito. As 3 milhões de crianças que poderiam deixar de morrer são tratadas como um efeito colateral menor. Mas não são apenas as crianças que sofrem as injustiças desse modelo. As próprias nações são afogadas pelas políticas que governam o mundo hoje. As políticas comerciais dos países ricos impedem o crescimento dos países pobres, afirma categoricamente o relatório do Pnud. “As barreiras comerciais que enfrentam os países em desenvolvimento que exportam para os países ricos são, na média, três vezes mais elevadas que as que regem os negócios entre os países ricos”, diz o estudo. Os países pobres representam menos de um terço das importações dos países ricos, mas dois terços de seus rendimentos alfandegários. Além disso, as nações pobres perdem quase US$ 24 bilhões anuais devido ao protecionismo agrícola e aos subsídios praticados pelos países ricos, particularmente EUA e membros da União Européia. A morte também avança contra a natureza. Um estudo realizado a pedido do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, divulgado em março deste ano, alertou que o planeta está correndo o sério risco de sofrer um colapso ambiental ainda neste século se medidas enérgicas não forem tomadas para reverter o atual quadro de destruição dos recursos naturais. Segundo esse estudo, cerca de 60% de todos os ecossistemas do planeta estão degradados ou sendo usados de um modo não-sustentável, o que pode provocar um colapso ambiental global em um período de 50 anos. Intitulada “Avaliação Ecossistêmica do Milênio” (AEM), a investigação iniciou em 2001, reunindo 1.360 especialistas de 95 países. As perspectivas para o futuro próximo são alarmantes, disseram os pesquisadores, enfatizando que a destruição de 15 dos 24 ecossistemas do mundo causará o surgimento de novas doenças, escassez de água, da pesca e aparição de zonas mortas no litoral.

A oportunidade aberta pela crise

Diante desses dados, fica mais evidente o sentido das afirmações iniciais deste texto: a luta continua (e se trata, mais do que nunca, de uma luta pela vida e contra a morte) e desistir não é uma opção. Ela, a luta, pode sofrer deslocamentos de lugar e assumir novas formas, mas não desaparece por uma simples e singela razão: os problemas que dão origem a ela estão se agravando. Considerando tudo isso, voltemos ao tema da crise política no Brasil e a oportunidade que ela abre para a esquerda. Muita gente diz que ela abre uma oportunidade para a direita também, possibilidade explicitada exemplarmente pelo senador do PFL, Jorge Bornhausen, ao dizer: “a gente vai se livrar desta raça por, pelo menos, 30 anos”. Defensor do modelo econômico responsável pelos índices descritos acima, Bornhausen foi modesto. A julgar pela evolução da situação social e ambiental do planeta, sua “gente” poderá se livrar “desta raça” (a humana) talvez para sempre. O que dificulta o desejo do banqueiro é que muitos integrantes “desta raça” possuem o mau hábito de resistir à morte. E enquanto houver luta pela vida haverá lutadores, independentemente do rótulo que recebam. O raciocínio, então, é simples. A deterioração das condições de vida no planeta tende a aumentar a temperatura dos conflitos sociais. Os responsáveis por essa deterioração têm nome e sobrenome. O sentido da existência da esquerda é lutar contra esse modelo e seus agentes. Caso se confirme a tendência de agravamento da crise social e ambiental, as contradições desse modelo se tornarão cada vez mais explosivas. Ou seja, a luta vai continuar, para a infelicidade do sr. Bornhausen. Agora, esse não é, obviamente, um processo automático e inevitável. Uma das lições que a esquerda aprendeu no século XX foi a de que não há tal coisa como uma inevitabilidade histórica. Se ela não tiver capacidade de aprender com seus erros, a destruição do planeta pode seguir seu curso até o fim, literalmente. E aqui entramos, propriamente, no terreno das lições. Em primeiro lugar, é imperioso afirmar que os erros e traições cometidos por dirigentes do Partido dos Trabalhadores têm uma gravidade redobrada quando consideramos as estatísticas citadas acima. Seu crime maior foi cometido, em última instância, contra a população mais pobre do país. E foi também contra um símbolo de luta pela vida, construído arduamente, por várias gerações, ao longo de várias décadas. O símbolo de que vale a pena lutar pela construção de uma sociedade que não seja regida pela lógica da morte. Mais do que vale a pena, aliás. Trata-se de uma necessidade, pois a ausência dessa luta conduz à morte. E é justamente pela natureza dessa necessidade que, no caso do PT, os setores partidários que não participaram da lambança protagonizada por alguns de seus dirigentes devem também assumir suas responsabilidades. Os erros foram variados. Alguns pecaram por omissão, outros pelo silêncio, outros ainda pela incapacidade de perceber o que estava acontecendo. Mas, fundamentalmente, pecaram pela incapacidade teórica e política de enfrentar o grupo que assumiu o comando do partido. E, aqui, nos deparamos com alguns problemas crônicos na história da esquerda brasileira: o menosprezo pela teoria, a ausência de leitura, o desconhecimento da história do país, história essa que ensina que o autoritarismo e o patriarcalismo são características profundamente enraizadas na cultura política nacional. Para enfrentar a luta que vem pela frente, esses erros têm que ser atacados em sua raiz. Não é mais aceitável que dirigentes políticos da esquerda não leiam, não estudem, não conheçam autores como Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Darci Ribeiro, apenas para citar alguns. Não é mais aceitável considerar o meio ambiente como uma perfumaria, uma moeda de troca de baixo valor. Não é mais aceitável ser cúmplice da destruição de espécies para alimentar um modelo produtivista que está destruindo o planeta.

A educação dos cinco sentidos


Não é mais aceitável que desconheçam a história da América Latina e acompanhem a conjuntura internacional pelo Jornal Nacional. Não é mais aceitável que a lógica eleitoral subordine todo o resto como se a esquerda existisse fundamentalmente para disputar eleições. Não é mais aceitável, tampouco, que se fale da necessidade de radicalizar a democracia e não se pratique isso no dia-a-dia. Diante da gravidade das múltiplas crises que se atravessam, a ignorância não é mais um direito. Trata-se, acima de tudo, como escreveu Paulo Faria, professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), de promover uma “educação dos cinco sentidos” (expressão de Marx). Em um artigo intitulado “A escuta à distância” (2), Faria extrai, da música do compositor italiano Luigi Nono, uma filosofia da atenção. Ele escreve: “a política de Nono – que é sua estética – deixou para trás a pergunta ‘que fazer?’. Em troca, somos convidados a perguntar: O que está aí que continuamos nos recusando a escutar?” O texto de Faria fala, entre outras coisas, de uma tragédia que marcou o século XX: “a de uma revolução – uma regeneração integral do homem e da natureza, uma educação dos cinco sentidos, como dizia Marx – que não aconteceu”. “O enjeu dessa ópera sem palco, sem enredo e sem ação é nossa capacidade, se alguma nos resta, de resgatarmos, do sono e da amnésia de nossa época, a promessa não-cumprida dessa revolução”. Para que esse resgate seja possível, precisamos aprender a escutar, a prestar atenção, a educar todos os nossos sentidos. Essa formulação certamente parecerá estranha a um partido que foi anestesiado pela lógica eleitoral e contaminado pelo pensamento e pela prática de quem deveria combater. Mas não tomá-la a sério, ou seja, considerar que esse anestesiamento não lhe diz respeito, é o caminho mais curto para repetir os mesmos erros, ou cometer novos. Se não identificarmos “o que está aí que estamos nos recusando a escutar”, permaneceremos todos surdos, cegos e mudos. Então, qualquer tentativa de reverter o movimento de destruição que ameaça o planeta e sua população deve começar por alguns passos simples. Escutar, prestar atenção, ler, ver, abrir-se para o mundo. Ele, o mundo, não é uma urna. Essa compreensão é constitutiva de algo que mereça ser chamado de esquerda. Sem isso, ela não será significativamente diferente de Bornhausen e sua gente. Gente como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que toma Henry Kissinger como “um velho amigo” e participa de uma fundação que aconselha o governo Bush a defender a democracia na América Latina. Gente como Antônio Carlos Magalhães, que hoje se tornou um arauto da ética na política. Foi o próprio PT que abriu as portas para essa gente, seus hábitos e costumes. Entender como isso aconteceu é uma tarefa árdua, que não se limita a expulsar meia-dúzia de dirigentes. Se o PT, seus dirigentes e militantes cumprirão essa tarefa é algo que o tempo vai dizer. O que é importante ter em mente é que esses erros servem de lição para toda a esquerda, dentro e fora do PT. Uma lição valiosíssima e reside aí o aspecto positivo da crise. Se ela não tivesse ocorrido, a deterioração do projeto e dos cinco sentidos de seus partidários seguiria seu curso, transformando definitivamente o maior partido da história recente da esquerda brasileira em uma entidade estranha à própria razão de ser da esquerda. E a esquerda existe para lutar pela vida e não para aliar-se a políticas e práticas que alimentam a morte e a destruição da natureza. Portanto, bom dia crise, seja bem-vinda! Da capacidade de enxergá-la de frente e de entender sua natureza mais profunda, dependerá a sobrevivência, não só do PT, mas de toda a esquerda. Os vícios que ela revela estão entranhados na sociedade e na política. O tamanho do estrago que o atual modelo econômico faz na humanidade, como aponta o estudo do Pnud, é proporcional ao seu enraizamento. Que ninguém se considere imune a eles. Se esse for o único aprendizado da crise, ela já terá sido benéfica. Quanto à luta, enquanto a vida continuar resistindo à morte, ela permanecerá aí, diante de nós, gostemos ou não.

(1) Stuart Hall, “Da diáspora: identidades e mediações culturais” (Ed.UFMG/Unesco, 2003). (2) Paulo Faria, “A escuta à distância – a propósito do Prometeo de Luigi Nono” (Revista Filosofia Política, série III, n° 2, Jorge Zahar Editor, 2001).

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