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terça-feira

A indústria do anticomunismo


Emir Sader


Um escritor judeu residente em Nova York chamou de membros da “indústria do holocausto” os que vivem às custas do massacre sofrido pelos judeus – assim como pelos comunistas e pelos ciganos, tão esquecidos. São burocratas, “intelectuais”, “religiosos” que vivem da exploração do tema – literalmente vivem: ganham dinheiro, prestígio, espaço na imprensa e nas editoras.
O mesmo se pode dizer do anticomunismo. O fim da URSS e do campo socialista deixou um tipo particular de viúva: os que viviam da “guerra fria”. Na Argentina, no momento da morte de Perón, um antiperonista radical – do Partido Radical – escreveu, desconsolado: “Nesse caixão vai metade da minha vida. Eu que cresci e vivi como antiperonista, o que vai ser de mim, de onde vou tirar o sentido da minha vida?” No desespero, sentia-se traído por Perón, que o abandonava à sua própria sorte.
Um comunista me dizia outro dia que se deliciava em ler a sobrevivente literatura anticomunista, porque dá a impressão que o mundo está à beira do comunismo, que os dias do capitalismo estão contados. Essa fauna encontra vários exemplares por aí, viúvas da “guerra fria”, que tratam de viver do anticomunismo: colunistas de uma (ainda) bem vendida revista semanal, filho de um marqueteiro; um articulista de duvidosa existência (há quem diga que é pseudônimo de um esquerdista, que criou esse grotesco personagem para desmoralizar a direita), um editor cultural promovido por um assassino – todos personagens jurássicos, deslocados, que têm que criar o fantasma do comunismo para aparecerem como valorosos “salvadores do capitalismo”, cobrando polpudos salários por esse papel que se auto-atribuem.
A mencionada revista semanal, saudosa dos tempos da bipolaridade EUA/URSS, destila periodicamente – entre capas sobre temas de saúde, de compras, de variedades, tiradas de revistas estadunidenses – seus venenos anticomunistas, de que pretende tirar proveito mostrando serviço ao grande empresariado e recebendo vantagens em troca.
Pautas como o MST, Cuba, guerrilhas, PT, Venezuela (lembram-se da grotesca matéria de capa regozijando-se do golpe contra o “ditador” Hugo Chávez, uma das maiores gafes dos últimos tempo na imprensa brasileira) alternam-se com matérias fúteis de propaganda do “american way of life”.
Nesta semana, por falta de pauta – o mundo e o Brasil lhes parecem suficientemente pobres de interesse – publica-se com estardalhaço – como se sugeria nos manuais de propaganda estadunidenses da “guerra fria” para os órgãos financiados e promovidos por eles – uma pífia matéria sobre suposto financiamento das Farc ao PT.
As Farc são um prato cheio para os nostálgicos da “guerra fria”. Guerrilha, América Latina, Partido Comunista, tentativa de criminalização acusando-os de “narcoguerrilhas” – sem nunca mencionar os reconhecidos vínculos do presidente colombiano com os paramilitares e, através destes, com os cartéis (nunca usaram a expressão “narcopresidente”). A matéria não apresenta nenhuma prova concreta, refugiando-se em fontes que teriam desejado não aparecer. Nada ficará quando a espuma da onda baixar. Mas a onda está feita, repercutida em todo o resto da imprensa escrita do fim de semana, com direito a desmentidos e entrevistas na televisão.
É esse o papel da imprensa da “guerra fria”. Desvia-se das pautas essenciais para o povo brasileiro e para o Brasil e resta o que os monopólios privados da mídia impõem. Uma senhora idosa declara, no Estadão, que é bem atendida pelo médico cubano que a atende em uma pequena cidade de 3 mil habitantes no norte de Tocantins – onde nenhum médico da burguesia vai. Mas o artigo publicado – sem uma outra versão, como pede o manual de redação desse jornal – na Folha de S. Paulo se preocupa com a validação do diploma da primeira geração de médicos pobres no Brasil.
Supostamente preocupados com a saúde do povo brasileiro, sem se dar conta de que esses médicos vão trabalhar em cidades como essa de Tocantins, na saúde pública, e que não vão concorrer com a clientela rica dos Jardins. Se preocupam com o diploma da Faculdade Latino-americana de Medicina, em Cuba, país que têm um dos melhores índices de saúde do mundo, ao contrário do Brasil, onde predomina a medicina privada.
Mas a indústria do anticomunismo precisa levantar os fantasmas da subversão, para poder vender seus serviços para uma burguesia covarde, disposta a qualquer coisa, para não perder nem os dedos, nem os anéis.


Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de “A vingança da História".

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