<$BlogRSDUrl$>

segunda-feira

Bolívia rebelada


Luis Bruschtein, Pagina12


Foram contra ele algumas das últimas palavras de Carlos Mesa antes de apresentar sua renúncia, nesta segunda feira, à Presidência da República da Bolívia. Evo Morales, deputado e líder do MAS, Movimiento Al Socialismo, recebeu os louros – compartilhados por Abel Mamani, presidente da Federação de Juntas de Moradores da região de El Alto e também acusado pelo presidente demissionário – por ter liderado uma escalada de protestos que acabaram por levar um governo já hesitante à paralisia

Os conflitos a que Mesa atribui sua renúncia mobilizaram bolivianos nos últimos dias rumo à certeza de que poderão enfrentar, de uma só vez, as transnacionais, as velhas oligarquias bolivianas e os partidos que as representam. A Bolívia saiu às ruas para tornar-se uma outra Bolívia. Literalmente, os movimentos que acuaram Mesa querem convocar uma Assembléia Nacional Constituinte para “refundar” o país. Querem também aprovar, imediatamente, a Lei de Hidrocarburetos que assegura à Nação pelo menos metade das taxas pela exploração do petróleo.

Indígena, filho de aymarás e lider camponês cocalero, Evo Morales não só está à frente das mobilizações por mudanças, como será peça-chave na definição de rumos da Bolívia. Seu partido, majoritário no Congresso, terá de decidir se aceita ou não a renúncia de Carlos Mesa, tida como uma chantagem final do presidente, ao pular espertamente do papel de dirigente submisso aos interesses das transnacionais para o de vítima de lideranças intransigentes.

O MAS tem compromissos com os milhares de bolivianos que, nos últimos dias, trancaram estradas para defender sua posição em defesa da recuperação dos recursos naturais, como a água e o gás, entregues à exploração de transnacionais. E terá de enfrentar a ira de outros setores bolivianos inconformados com uma segunda interrupção de mandato presidencial e que, ontem, também saíram às ruas para pedir a Mesa que não renuncie e use de “mão pesada” contra os revoltosos. São, porém, cada vez menos os que se escudam na idéia de uma solução pela linha dura.

Evo Morales conta nesta entrevista ao Página 12 como os setores médios do país começam a vê-lo com simpatia, como um possível candidato à presidência em 2007. E sentencia: eu só acredito no poder do povo (RF)








Qual é a posição do (seu partido) Movimiento al Socialismo em relação ao gás da Bolívia?


Consideramos tratar-se de um recurso natural, patrimônio nacional. Por conta disto, a primeira etapa na luta de nosso povo é a recuperação de sua propriedade. Já o segundo passo é encontrar uma forma pela qual a comercialização e exploração desse gás beneficiem os bolivianos. Em terceiro lugar, esta a exportação aos países da região - para Brasil, Chile, ou mesmo Argentina. No caso do Chile, nós a incluimos no contexto de outra negociação, que é a saída ao mar.
Se querem importar gás boliviano, estamos falando de reciprocidade, significa fazê-lo de modo que possa resolver os problemas de nossos países e de outros. Quando falo de reciprocidade, os países da região devemos, fundamentalmente, nos entender. E, se falamos da Argentina, temos que entabular as negociações, mas num contexto de equilíbrio do qual nossos países se beneficiem, tanto o produtor como o consumidor. E para isso temos que tirar do meio as transnacionais, os intermediários. Que sentido faz um negócio para nossos países quando a negociação se dá entre a Repsol-Bolívia e a Repsol-Argentina? Nenhum.

Para chegar a uma negociação desse tipo, muitas coisas deveriam mudar entre os dois países...

Aqui a negociação tem que ser de Estado para Estado, para que os povos se beneficiem. Neste momento, estamos na etapa de mudar, na Bolívia, a Lei de Hidrocarbonetos, recuperando sua propriedade. A partir daí, seria refundada a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (estatal petrolífera boliviana), para que fosse exercido o direito proprietário e estabelecidas negociações em nome do povo boliviano – a Yacimientos havia sido eliminada como empresa estatal. Nós consideramos que ela deve ser reaberta para explorar, industrializar e exportar este recurso natural.

Em que ponto se encontra a discussão sobre o assunto na Bolívia?

Neste momento, o povo está mobilizado em greves de fome, marchas, bloqueios de rotas, para que o Parlamento aprove de uma vez a nova Lei de Hidrocarbonetos, garantindo a propriedade e refundando a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos, com 50% do ganho sobre os direitos de exploração para a empresa e 50% para o Estado.

Quanto tempo pode demorar a aprovação da nova lei?

A lei em si já está aprovada, falta que passe pelo Senado. O tema ao qual têm sido colocadas as maiores restrições é o referente ao tributo sobre a concessão para a exploração.

O que declara a Repsol em relação à nova lei?

Bom, as transnacionais nunca querem deixar a mamadeira, este é o problema. E não faltam alguns parlamentares e políticos que defendam o interesse das multinacionais acima dos interesses dos bolivianos.

Depois das eleições nacionais de 2002 na Bolívia, o MAS, partido que você conduz, acabou posicionado como o mais importante do país...

Nas eleições nacionais de 2002, fomos legalmente apontados como o segundo partido. Mas, quando o assunto são as eleições municipais, somos, legal e legitimamente, a primeira força.

Isto significa uma boa perspectiva de vencer as eleições presidenciais de 2007...

Os chamados índios, quechuas e aymaras, condenados à extinção, ao extermínio, nossos antepassados, nossos avós, não tinham o direito de entrar ou caminhar pelas praças principais, não tinham o direito a caminhar nas calçadas. E agora estamos no Palácio Legislativo, a um passo do Poder Executivo. Temos decidido como queremos governar a nós mesmos.

Quantos deputados tem o MAS?

Dos 130 deputados, temos 27; dos 27 senadores, temos 8. Isto foi produto das eleições nacionais, nas quais fomos a segunda força política.

Sua figura no cenário boliviano tem sido duramente criticada pelo governo dos EUA. Como você vê essa reação?

Se o cão ladra é porque tem alguém andando, não é verdade? E o movimento dos povos nativos, o Movimiento al Socialismo, avança com firmeza para, primeiro, fazer de Evo Morales presidente em 2007, e, depois, para que o MAS seja o governo. Mas, na presidência, no governo, governará pelo poder do povo. Acredito apenas no poder do povo. Há firmeza, somos fiéis a esta proposta. A reação do Norte não nos assusta – felizmente, o povo perdeu o medo das ameaças do governo dos EUA.

Acredita que possa existir uma atitude intervencionista, mais agressiva?

Creio que este seja o espírito. Mas creio também que um governo boliviano deste tipo (popular) não estaria só. Existem hoje presidentes que estão com seu povo (aos quais somou-se, como uma grande esperança para os despossuídos, Tabaré Vázquez), um grande horizonte junto aos movimentos sociais e políticos para frear a soberbas do Império.
Considero essas declarações que vêm da Casa Branca como uma campanha, são ameaças, amedrontamento. Eles farão campanha para os outros candidatos (ao governo boliviano), mas acredito que não estão levando em conta a decisão do movimento popular de libertação do Império. Qualquer atitude mais agressiva não teria futuro. É assim que o Império agoniza no Iraque. Estou crente que o Iraque será o segundo Vietnã para os EUA -- assim como acredito que, caso Washington resolvesse intervir em Cuba, Venezuela, Argentina, Bolívia, Uruguai ou Brasil, seria um terceiro Vietnã.

Além do apoio dos setores camponeses e dos povos nativos, tem também o MAS recebido o voto de outros setores da sociedade, como o da classe média ou de empresários?

Sim, este tem sido um processo interessante. Dou como exemplo uma vez em que, andando pelas ruas com meus companheiros, em campanha, uma senhora da cidade, bem arrumada, se apresentou e me disse: “Vou te dizer: Evo, você não está preparado para governar”. Foi uma situação bastante agressiva. Não quis respondê-la do mesmo modo, e disse apenas “obrigado”. Então a senhora me disse: “Siga em frente, Evo, e vou votar em você porque você é honesto”. Vejo que a classe média, os intelectuais, vão se somando, incluindo empresários austeros, honestos. Estamos somando setores empresariais, agroindustriais...

Um governo do MAS precisaria do sustento de outros setores além do campesino...

Sim, neste momento o movimento campesino, dos povos nativos, é o mais importante. Antes era o movimento minerador, mas um governo do MAS abarcaria outros setores, claro...

Vocês estão propõem uma convocatória para a redação de uma nova Constituição?

Queremos refundar a Bolívia mediante uma Assembléia Constituinte. Refundar a Bolívia para unir o país. Refundar a Bolívia para eliminar a discriminação, a exploração, a marginalidade, a alienação. Refundar a Bolívia para vivermos unidos na diversidade. Somos diversos, mas formamos um mesmo país.

Você disse que teriam uns 30% dos votos, mas um apoio de 50%, porque muita gente não poderá votar na eleições ...

O grande problema que temos é o da documentação e identificação. Lembro-me de um caso familiar, na carteira de identidade do meu pai havia a data de seu nascimento. Eu estava me preparando para comemorar seu aniversário. Porém, ele não sabia se essa era a data de seu aniversário. Eu não entendia. Ele dizia que, assim como meus avós, não sabia em que dia havia nascido. “Inventei essa data para obter a carteira de identidade, explicou”. Há famílias que não sabem a data de seu nascimento, não possuem certidão de nascimento e, por isso, quando chegam as eleições não podem votar. Na campanha há companheiros que dizem: “Companheiro Evo, eu só sirvo para levantar a mão, mas para votar não”. Imagine. Para os partidos da direita não interessa documentar, porque se documentarem os pobres, isso será um voto contra eles mesmos. Nós queremos documentar, mas não temos como.

Outros movimentos populares, como o da revolução de 52, fizeram campanhas de documentação?

Minimamente nas cidades e em algumas províncias, mas não para todos. Claro, até 52, não havia voto universal. O voto universal tem custado sangue. Antes da revolução de 52 diziam que, como os camponeses não pagam impostos e não sabem ler, não podiam votar. Havia milhares de imposições e entraves. Consideravam a nós, campesinos da Nación Aymara, quase como animais e selvagens e, por isso, não poderíamos ter direito ao voto. Nos tem custado sangue conseguir o voto. Assim como o referendo vinculante também está custando sangue. Agora, não só temos o direito de decidir quem é o presidente, como também, temos o direito de decidir sobre o destino do país através do plebiscito.


Quais são os pontos mais importantes da nova Constituição que lhes interessa defender?

Primeiro, no regime econômico, acabar com o Estado concessionário, o Estado privatizador. No plano social, defendemos a equidade e igualdade no tema educação, moradia, saúde e trabalho. E quanto à estrutura política, reformulá-la completamente, para que o ser autoridade não seja servi-se do povo, mas um serviço para o povo, que é o que praticamos em nossa comunidade. E, fundamentalmente, buscar além de certo equilíbrio, potencializar os novos movimentos sociais a partir da nova Constituição e o debate sobre a demarcação.
Existe a região quéchua, região aymara, é preciso respeitar a nova demarcação política territorial da Bolívia. Além disso, vamos defender que os residentes bolivianos em outros países, como Argentina, Estados Unidos e Europa, tenham direito a votar nas embaixadas durante nossas eleições. Nós sempre defendemos isso, porém, não foi aceito até agora, porque essa gente foi embora da Bolívia para Argentina, Espanha e Estados Unidos em busca de empregos, justamente, pelas más políticas econômicas que foram implementadas em nosso país. Por isso, esses partidos de direita, o MNR, MIR e ADN sabem que, se for permitido a eles votar, serão votos contra eles. Esse será um dos nossos temas centrais na Assembléia Constituinte.

O MAS buscará alianças com outros partidos no caminho às eleições presidenciais?

Não nos interessa a aliança com outros partidos, buscamos aliança com os movimentos sociais da educação, das fábricas, estudantes, camponeses, mineiros, jornalistas e sindicatos de trabalhadores.

Como você enxerga o processo regional que tem se produzido com a chegada de governos de significado diferente aos de cinco anos atrás?


Entre os anos de 90 e 92, quando eu era dirigente sindical, um jornalista me perguntou o que eu pensava sobre Cuba. Eu respondi que um dia haveria muitas Cubas, com soberania, como Cuba libertada, nações que reivindicarão sua independência do império. Agora digo que me equivoquei. Temos nações como a Venezuela, temos inclusive o Brasil e o presidente Kirchner, que dignifica a posição dos argentinos. Agora soma-se o Uruguay com Tabaré Vázquez. Oxalá que um dia todos os países latino-americanos vivam com dignidade, com soberania e freando a soberba do império, como a de Bush e seu governo, que está orientado apenas para concentrar o capital em poucas mãos e a maioria que morra de fome.

Um governo do MAS se encaixaria também nesse processo?

Esperamos que sim, seríamos um governo dos povos originários, um governo totalmente distinto, porém, antineoliberal e antiimperialista, creio que um governo assim no cenário latino-americano aportaria essa faceta que, todavia, falta a esse processo que é a voz dos povos nativos. Todo o povo latino-americano está em processo de viver a unidade na diversidade. Somos brancos, morenos, negros, simpáticos ou feios como o Negro Morales ...

E como começou em você essa inquietude pelos movimentos sociais?

Eu jamais, jamais, havia pensado fazer política nesse nível, me converti em um referencial nacional e quem sabe internacional, é o que o governo dos Estados Unidos falaram de mim. Comecei por razões econômicas, de sobrevivência no Altiplano da nação aymara, da nação quéchua. Foi a necessidade de sobreviver e trabalhar e depois o impulso dos companheiros do sindicato agrário de camponeses de San Francisco, em Chapare, Cochabamba. Meu primeiro cargo foi de secretário de esportes do sindicato, que tinha 140 afiliados. Me chamavam de “jovem batedor”. Sábado e Domingo me dedicava ao futebol, e continuo me dedicando, mas agora, por problemas no joelho, não posso jogar por dois meses. Também jogo squash , não sou campeão, mas vou levando. O segundo cargo foi de secretário de atas e logo depois, secretário geral do sindicato. Em 88 estivemos na federação e em 92 fui presidente das seis federações de Cochabamba.

Seus pais tiveram alguma participação, discutiam política em sua casa?

Meu pai tem sido a autoridade originária, mayllku. Ele me dizia que se eu quisesse ser importante na vida, teria que respeitar os menores e maiores. Essa foi sua melhor lição. Eu me guio por três ou quatro coisas: respeito ao povo; quem sabe, perdoa; soberba contra o império, não provocador, mas por defender a nossa identidade, a nossa nação e aos pobres, porque, às vezes, tem que responder de igual para igual; honestidade, sinceridade e conseqüência. Essas foram bases para ter me tornado primeiro dirigente sindical e agora dirigente político.

Você também trabalhava no campo?

Claro, trabalhava como tropeiro, caminhava quilômetros para levar um rebanho de lhamas de um lugar a outro. Às vezes, enquanto caminhava com as lhamas, passava o ônibus. Os passageiros comiam laranjas e jogavam as cascas na ventania. Eu seguia comendo as cascas que recolhia. Sonhava em viajar um dia no ônibus comendo as laranjas. Agora parece mentira que faço esse trajeto de avião.

A primeira escola em que esteve foi aqui na Argentina?

Sim. Lembro-me que, entre 64 e 65, a colheita de cana na Argentina estava na moda. Havia um boliviano que recrutava trabalhadores para trabalhar no campo. Caminhamos a pé até uma estação de trem, em Ouro, onde pegamos um trem. Meus pais me trouxeram à Argentina, passamos por Villazón, La Quiaca e chegamos a Jujuy. Lembro-me que chegamos a um acampamento em Calilegua, ao lado de Ledesma. Meu pai trabalhou lá e todos os filhos dos trabalhadores eram mandados para escola. Haviam tratores e íamos neles para escola. Eu era um ayamara fechado e na escola não entendia nada. Foi minha primeira escola
primária.



Links to this post:

<\$BlogItemBacklinkCreate\$>

Comments: Postar um comentário

This page is powered by Blogger. Isn't yours?