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segunda-feira

Mobilização social: Uma América Latina em transformação


Escreve Mário Augusto Jakobskind, do Rio de Janeiro (RJ)Jornal Brasil de Fato, 30 dezembro a 5 de janeiro 2005.


Para muita gente, sobretudo para os que acompanham as transformações na América Latina, o nome da cientista política Marta Harnecker é conhecido. Há anos, as suas análises têm sido indispensáveis para entender o que se passa no continente. Chilena que viveu anos em Cuba, depois de fugir da repressão do general Augusto Pinochet, esta pensadora sintonizada com o movimento operário tem percorrido inúmeros países, inclusive o Brasil, para conhecer de perto a realidade do movimento social e popular. Atualmente, ela está debruçada sobre a revolução bolivariana liderada pelo presidente Hugo Chávez Frias. Marta Harnecker esteve recentemente no Rio de Janeiro, acompanhando a comitiva do governo da Venezuela que veio participar da Cúpula do Rio de Janeiro.


Brasil de Fato - Como a senhora está vendo a conjuntura da América Latina depois da reeleição de George W. Bush?
Marta Harnecker - Todos sabíamos que não havia grande diferença entre John Kerry e George W. Bush em matéria de política internacional. Com Kerry, a política externa não mudaria muito, mas haveria alguma diferença. Por isso, eu estava do lado daqueles que, nos Estados Unidos, apoiavam o candidato democrata. Para as nossa lutas, a situação não muda muito. Temos que enfrentar o império com toda a sua força.BF - Nada, então, muda para nós?Marta - Eu acho, repito, que as nossas tarefas não mudam muito, porque em nosso continente a resistência contra o modelo neoliberal avança, seja com Kerry ou Bush. Ainda falta muito por construir, mas estamos avançando. Os resultados das eleições dos últimos anos refletem isso. Os nossos povos estão escolhendo candidatos que, ao menos simbolicamente, representam uma alternativa ao neoliberalismo. Digo simbolicamente, pois, entre a execução do programa e a prática, em alguns casos há ainda grandes distâncias. Distâncias que, se não são encurtadas, recebem a punição dos povos, como no caso do presidente Lucio Gutiérrez, do Equador.
BF - E quando as promessas não são cumpridas?
Marta - No caso equatoriano, é evidente que os movimentos indígenas que apoiaram Gutierrez já concluiram que erraram e têm de buscar alternativas. Não seria surpresa se o presidente fosse derrubado. Nossos povos chegaram ao estágio em que, pelo menos, estão dispostos a resistir. Conseguiram mudar governos, como o de Fernando de la Rua, na Argentina, e, na Bolívia, a troca de Gonzalo de Lozada por Carlos Mesa. Mas não basta resistir, ou derrubar governos. Não estamos mais na época de uma esquerda destrutiva, mas na de uma esquerda que possa criar alternativas. Para isso, é fundamental a organização popular. Hoje, sem ela, nenhuma alternativa é possível. É o que mostra a Venezuela, onde o presidente Chávez ganhou oito processos eleitorais, foi confirmado democraticamente. Ele conseguiu vencer e crescer porque o povo foi se organizando.
BF - Por favor, explique melhor.
Marta - O venezuelano é um governo que está se movendo no quadro institucional herdado, mas faz um grande esforço para mudá-lo. Foi o governo da América Latina que colocou como fundamental que, para transitar pela via pacífica, era necessário mudar as regras do jogo institucional anterior. Conseguiu mudar a Constituição, mas não basta isso. É necessário criar leis, ter uma correlação de forças no Parlamento que permita fazê-las. O aparato institucional e burocrático, tanto nos ministérios, como nos governos estaduais e prefeituras, foi herdado. Um tal aparato impede a materialização de um projeto de país diferente e transformador.
BF - Como o governo Chávez mudou o quadro?
Marta - O aparato institucional pode triturar os quadros. Para avançar nas medidas sociais, resolver os problemas mais agudos do povo como a pobreza, o analfabetismo, educação, saúde, o governo bolivariano criou missões, ou seja, espaços de atuação fora dos ministérios. Esta foi a maneira de atender gente que nunca foi atendida, pois os ministérios eram estruturalmente incapazes de fazê-lo.
BF - Isso acontece no Brasil e em toda a América Latina.
Marta - Claro. Com um esquema viciado era impossível cumprir todas as tarefas sociais. O presidente Chávez partiu para novas formas de organização dos ministérios, ou até criou novos. Nesses, o povo organizado teria de ter ativa participação, tanto na fixação das metas locais como no controle das tarefas. Nada disso é possível sem que se organize e pressione. O povo tem que ajudar, e o governante aceitar a pressão popular.
BF - E quando isso não acontece?
Marta - Há um tema muito complicado para a esquerda, a do que fazer quando não há candidatos que a representam. Foi o que aconteceu nas últimas eleições na Venezuela, onde havia candidatos sem muito apoio, mas foram impostos pela cúpula. Os eleitores reclamaram por esses candidatos terem sido eleitos. Temos que analisar a questão da abstenção na Venezuela, que foi grande.
BF - Grande quanto?
Marta - Cerca de 60%. No processo venezuelano, eu sustento que toda a pedagogia do presidente Chávez leva ao crescimento político do povo. Esse povo que saiu às ruas e conseguiu a volta de Chávez, sem que tenha havido uma orientação política, sentindo-se protagonista. Apesar de toda a campanha midiática contra o governo. Um povo que, além disso, decidiu bloquear a informação, simplesmente deixando de ver as televisões opositoras e comprar os jornais desses grupos.
BF - Então, o papel da mídia é relevante?
Marta - Sabemos que a guerra atual é midiática. Lembro sempre o que Noam Chomsky diz: a repressão está para a ditadura, como a propaganda para a democracia. Ou seja, a democracia burguesa pode se manter porque a mídia convence as pessoas que esse é o melhor dos mundos, cria ilusões com as novelas, que hoje são o ópio do povo. No Brasil me assombra que pode haver muitas favelas, mas em todas as casas se vê uma antena de TV.
BF - E como fazer frente ao poder midiático?
Marta - Não há como as forças progressistas competirem com a mídia burguesa. Então, qual a saída? A nossa prática diferente. Por que em Porto Alegre, durante muito tempo, com toda a mídia contra, a esquerda no governo cresceu? Porque houve uma prática política diferente e as pessoas viam, e quando isso acontece, cria-se um distanciamento crítico diante das mensagens da oposição.
BF - No Uruguai, além da vitória de Tabaré Vasquez, foi importante a esquerda ter conseguido também maioria parlamentar?
Marta - Claro. E isso vale para Lula, pois não se pode julgar os governos sem uma análise sobre a correlação de forças. Quando a esquerda analisa um governo muitas vezes esquece da correlação de forças. Não se pode comparar o governo de Chávez com o de Lula. O primeiro, como diz o próprio Chávez, é uma via pacífica, mas não desarmada. O que significa isso? Que o povo está armado? Não. Significa que é uma via pacífica que conta com o apoio da força armada institucional, quer dizer, a grande maioria do Exército apóia Chávez.
BF - E no Brasil?
Marta - Chávez é o primeiro governo que se coloca como bandeira de sua eleição a mudança da regra do jogo institucional, porque sabia que precisava de uma nova Constituição, e fez a propaganda eleitoral pregando uma Assembléia Constituinte. E conseguiu mudar a Constituição e, logo, a correlação de forças do aparato institucional. Isso o Lula não conseguiu. Mesmo que Lula ganhasse com maior apoio eleitoral do que o de Chávez, em 1998, não se pode esquecer que estes resultados foram produto de uma ampla política de alianças, necessária para ganhar nas urnas, e mais necessária para governar o país. O Partido dos Trabalhadores é minoria em ambas as câmaras do Poder Legislativo. A isso, acrescente-se que o Brasil depende muito mais do capital financeiro internacional que a Venezuela com o seu petróleo.
BF - Como vê as diferenças entre o governo da Venezuela e o de outros da América Latina como o Brasil e Argentina, por exemplo?
Marta - Além da correlação de forças, da mudança da Constituição, de uma nova correlação de forças nas instituições, e de apostar na organização popular, está a questão do petróleo. Ou seja, a Venezuela, é um país imensamente rico que tem uma grande entrada de divisas com o óleo negro que, num primeiro tempo, estava bloqueado pela exigência da oposição. Hoje, com as divisas com o petróleo, a Venezuela tem a possibilidade de não depender das políticas do Fundo Monetário Internacional. Não é a situação da maior parte dos países latinoamericanos. Outros países não têm a liberdade econômica que tem a Venezuela.
BF - A senhora critica as críticas da esquerda a Lula?
Marta - Acho que é necessário ter em conta muitos elementos e, que, às vezes, a crítica é um pouco superficial. É preciso criar alternativas. Aplaudo aqueles que dizem não estar de acordo com o que está ocorrendo no Brasil, mas reconhecem que há um governo em disputa e se não existem forças capazes de inclinar balança, isso fica assim mesmo. Há uma responsabilidade muito grande do pessoal que critica. Ser radical não significa pronunciar-se a favor de soluções mais radicais, mas criar as condições para fazer as coisas. Lembro que os salvadorenhos discutiam fazer uma passeata pela paz e discutiam se sairiam com a bandeira do socialismo ou da paz. Os mais radicais queriam a primeira. Os outros diziam que com a da paz reuniriam cristãos e pessoas que não eram socialistas. Decidiram finalmente fazer uma marcha pela paz e reuniram uma enorme quantidade de gente. Todos os que assistiram saíram fortalecidos para continuar a luta. Isso muito mais radical.
BF - Então, qual é o caminho?
Marta - Eu acredito muito em construir forças. Eu diria que esse é o meu tema. A arte da política é essa: criar forças para fazer no futuro o que não se pode fazer hoje. Há uma reflexão sobre quem é o oportunista. aquele que diz que não tem força e se adapta. O revolucionário é aquele que sabe que não tem força, mas se coloca de forma a criar condições para isso. Inventa, busca, como mudar a correlação de forças. São duas posições distintas: uma conformista, oportunista, outra, para mim, revolucionária, a que trabalha por construir as forças que permitam alcançar os objetivos. Equivocam-se os que acreditam ser mais de esquerda porque lançam discursos muito de esquerda. E digo mais: aquele que queira ser radical, que trabalhe para construir as forças sociais e políticas que permitam sê-lo. Luta-se criando. Por isso, gosto da idéia de distinguir entre uma esquerda destrutiva e uma construtiva. (Participou Beatriz Bissio)

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