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quarta-feira

O Brasil não entenderá a Venezuela
Emir Sader

Apenas umas dezenas de milhares de brasileiros, no máximo, devem ter visto o filme “A revolução não será televisionada”, feito por irlandeses sobre o golpe contra o governo de Hugo Chávez em abril de 2002. O excelente documentário foi projetado dezenas de vezes, mas nos canais com menos audiência – a TV Senado, entre eles.
Tendo ido à Venezuela para fazer uma reportagem sobre a situação interna no país, os irlandeses puderam presenciar o clima no Palácio Miraflores, sede do governo venezuelano; mas depois puderam também testemunhar o golpe, a posse do efêmero governo, o papel da imprensa privada e o incrível desenrolar dos acontecimentos, em que a mobilização popular levou Chávez de novo ao poder. É um desfecho inédito na América Latina, depois de cenas de golpe conhecidas por nós, em 1964 pelos chilenos, em 1973 pelos uruguaios e em 1976 pelos argentinos, em que os golpistas, apoiados pela grande mídia privada, triunfaram. Pela primeira vez a reação popular – apoiada pela baixa oficialidade das forças armadas – derrotou os golpistas.
O documentário tira seu título do fato de que as empresas privadas, que detêm o monopólio da mídia naquele país, noticiaram o golpe mas, a partir do momento em que o povo invadiu o palácio presidencial e recolocou Hugo Chávez no governo, todos os canais suspenderam a sua cobertura, substituída por desenhos animados. Os espectadores venezuelanos não foram informados sobre o desfecho do golpe e sobre o protagonismo popular. A mídia privada, que tem no magnata Gustavo Cisneiros seu principal proprietário, foi o partido político do golpe, que levou ao presidente da federação das indústrias efemeramente ao governo. Revelando o caráter classista e entreguista do golpe, foi imediatamente decretada a dissolução das instituições eleitas pelo povo e se anunciou o processo de privatização da PDVS, a empresa petrolífera.
Um dos casos mais escandalosos de utilização totalitária do monopólio privado da mídia praticamente passou batido da imprensa brasileira. Exceção foram as coberturas feitas pela revista Carta Capital e pela Agência Carta Maior e, no caso da Folha de S.Paulo, os relatos de Clovis Rossi que, tendo estado lá, se deu conta do escândalo.
A cobertura posterior da imprensa brasileira impediu que os leitores e espectadores soubessem o que seguia acontecendo na Venezuela. Por isso foram pegos de surpresa com a vitória inquestionável de Hugo Chávez no plebiscito. Não poderiam saber como um governante desqualificado com os clichês da guerra fria pela imprensa brasileira tinha conseguido derrotar o monopólio privado da mídia e a oposição, apoiado pelo governo Bush e que contava com a solidariedade corporativa de quase toda a mídia latino-americana e de outros lugares do mundo.
Esse exemplo de péssimo jornalismo continua. Uma dentre tantas matérias, a publicada nesta semana pelo jornal Folha de S.Paulo, é um bom exemplo desse jornalismo ditatorial. Assinado por Carolina Vila-Nova e escrito desde a redação da FSP, o texto revela que a jornalista repete simplesmente o que as agências internacionais publicam diariamente sobre a Venezuela. Ela escreve que a lei de regulação dos meios de comunicação – aprovada pelo Congresso venezuelano sob o efeito direto da ação totalitária do monopólio privado da mídia no golpe, assim como na incitação cotidiana à violência, incluído o assassinato de Hugo Chávez – “passou sob críticas generalizadas”. Usa-se o sujeito oculto – de que os editorais e as matérias editorializadas usam e abusam – sem dizer “quem” faz as “críticas generalizadas” e por que “generalizadas”. Se consulta-se a imprensa diária e todos os canais privados da televisão, pode-se ter essa impressão; mas haveria que dizer que trata-se de uma imprensa totalmente nas mãos dos grandes grupos monopólicos privados.
Se compram as versões dos monopólios privados da mídia como elas são vendidas e, quando se trata de dar – em um espaço sempre visivelmente menor, só para cumprir como o “Manual” – a versão do outro setor, majoritário, conforme resultado do plebiscito e das eleições posteriores, a forma de relatar é totalmente outra: “O presidente acusa as emissoras de terem apoiado a tentativa de golpe de 2002.” Enquanto se compromete com a versão da mídia privada, no caso, evidente, do golpe, atribui as acusações ao presidente venezuelano. Tenta assim passar a idéia de que há críticas generalizadas ao projeto aprovado pelo Congresso venezuelano, enquanto de outro lado há apenas uma acusação.
Se a jornalista em vez de ficar colada aos despachos das agências internacionais conversasse com Clovis Rossi ou tivesse visto o filme irlandês ou lesse órgãos que dão versões diferentes daquelas que usualmente são utilizadas na grande mídia privada, saberia que as coisas são bem diferentes ou, pelo menos, que há outra visão das coisas. Visão que, embora conflitante com os interesses das grandes corporações midiáticas, tem que ser relatada aos leitores caso se queira manter, pelo menos na aparência, um tom minimamente democrático na informação.
Se algum jornalista da FSP tivesse, ao ir à Venezuela, assistido a algum dos canais públicos, veria uma entrevista com um artista desse país, que vive em Caracas – mas que concedeu a entrevista em Miami. Ele prega que “se abata os animais”, especialmente “o animal maior”; relata que “existem excelentes fuzis com mira” e que se pode “contratar comandos israelenses”. Poderiam relatar o caráter truculento da mídia privada e saber porque o Congresso aprovou a lei de regulação dos meios de comunicação.
A depender da grande mídia privada brasileira, os brasileiros não compreenderão o que acontece na Venezuela. Os que quiserem compreendê-la, têm que buscar ler Carta Capital, Carta Maior, Caros Amigos, Correio da Cidadania, Reportagem e outros órgãos da imprensa independentemente. Recomenda-se especialmente a Carolina Vila-Nova e a todos os jornalistas brasileiros.

Emir Sader , professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de “A vingança da História".
Fonte: Carta Maior

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