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terça-feira

Coisas raras
Eduardo Galeano
No ano de 2002, Clint Mathis, estrela do futebol dos Estados Unidos, anunciou que sua seleção ia ganhar o campeonato do mundo. Era lógico, era natural, como explicou, “porque nós somos o país líder em tudo”. O país líder em tudo terminou em oitavo lugar.
No futebol ocorrem coisas raras. Num mundo organizado para a cotidiana confirmação do poder dos poderosos, nada é mais raro que a coroação dos humilhados e a humilhação dos coroados; mas no futebol, às vezes, essa raridade acontece.
Para começar, no ano de 2004 um clube palestino foi campeão em Israel, pela primeira vez na história, e pela primeira vez na história um clube checheno foi campeão na Rússia. E na Olimpíada da Grécia, a seleção de futebol do Iraque, em plena guerra, venceu várias partidas e chegou a disputar as semifinais do torneio, de surpresa em surpresa, contra todos os prognósticos e contra todas as evidências, e foi a número um no fervor popular.
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O clube árabe Bnei Sakhin e o clube checheno Terek Grozny, vistosos campeões de Israel e da Rússia, têm algumas coisas em comum com a seleção nacional do Iraque.
Trata-se de equipes que de alguma maneira representam povos que não têm o direito de ser o que querem ser, que padecem da maldição de viver submetidos a barreiras alheias, despojados de sua soberania, bombardeados, humilhados e empurrados ao desespero.
E como se isso fosse pouco, as três são equipes modestas, desconhecidas ou quase, sem nenhum jogador famoso, e pobres. Em realidade, nem sequer têm estádio. Nunca jogam em casa, nunca são mandantes. São equipes errantes, condenadas a jogar em terras estranhas e diante de arquibancadas vazias. Na aldeia de Sakhnin, na Galiléia, nunca houve estádio ou coisa semelhante, ainda que o governo israelense o tenha prometido várias vezes. O Terek jogava no estádio de Grozny, que está fechado desde que os separatistas chechenos colocaram, ali, uma bomba sob a poltrona do presidente imposto pelos russos. E no Iraque só existem campos de batalha. Já não restam campos de futebol. As tropas de ocupação, que a esta altura já esqueceram os pretextos de sua invasão criminosa, têm convertido os espaços desportivos em hospitais ou cemitérios. Onde ficava o estádio de Bagdá, existe agora uma base militar que hospeda os tanques dos Estados Unidos. A seleção iraquiana treinou em campos onde pastavam os rebanhos de ovelhas.
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Um símbolo poderoso, um assunto misterioso: não se sabe por quê, embora não faltem teorias, mas é fato que no mundo de nosso tempo, muita gente encontra no futebol o único espaço de identidade no qual se reconhece, e o único no qual realmente acredita. Seja como for, pelos motivos que forem, a dignidade coletiva tem muito a ver com a viagem de uma bola que anda pelos caminhos do ar.
E não me refiro só à comunhão que o torcedor celebra com seu clube a cada domingo nas arquibancadas do estádio, mas também, e sobretudo, ao jogo jogado nos terrenos baldios, nos campinhos, nas praias, e nos poucos espaços públicos ainda não devorados pela urbanização enlouquecida. Enrique Pichon Riviére, psiquiatra argentino, amoroso estudioso da dor humana, havia comprovado a eficácia do futebol como terapia para as patologias derivadas do desprezo e da solidão. Este esporte compartilhado, que se desfruta em equipe, contém uma energia que muito pode ajudar a aprender a gostar de si os desprezados, e a salvar-se da solidão os que parecem condenados à incomunicabilidade perpétua.
É muito reveladora, neste sentido, a experiência de Austrália e Nova Zelândia. Ali, as línguas nativas não conheciam a palavra “suicídio”, pela simples razão de que o suicídio não existia na população aborígine. Ao fim de alguns séculos de racismo e marginalização, a violenta irrupção da sociedade de consumo e seus implacáveis valores conseguiram fazer com que os indígenas decidissem se enforcar. Nos últimos anos, suas crianças e jovens têm registrado os índices de suicídio mais altos do mundo.
Diante desse panorama aterrador, de tão profundas raízes, de raízes tão estragadas, não existem fórmulas mágicas para a cura. Mas em algo coincidem os testemunhos da linda gente que trabalha contra a morte. São surpreendentes os resultados desta terapia capaz de devolver os sentimentos perdidos de pertencimento e fraternidade: o esporte, e sobretudo o futebol, é um dos poucos lugares que oferecem refúgio a quem não encontra lugar no mundo, e muito contribui para o restabelecimento dos laços de solidariedade partidos e para a cultura do desvinculo que hoje em dia manda na Austrália, na Nova Zelândia, e no mundo.
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Não é um milagre químico. Estão dopados pelo entusiasmo e pela alegria. Melhor dito: dopadas. Os onze jogadores de cada equipe são muito mais que onze. Melhor dito: as onze jogadoras. Neles, joga uma multidão. Melhor dito: nelas. Estes são rituais de afirmação dos humilhados. Melhor dito: das humilhadas.
Pouco a pouco, o futebol das mulheres vem ganhando espaço nos meios dedicados à difusão desse esporte de machos para machos, que não sabe o que fazer com esta imprevista invasão de tantas senhoras e senhoritas.
A nível profissional, o desenvolvimento do futebol feminino encontra, hoje em dia, certa ressonância. Mas não encontra eco nenhum, ou desperta ecos inimigos, no jogo que se pratica pelo puro prazer de jogar.
Na Nigéria, a seleção feminina é um orgulho nacional. Disputa os primeiros lugares no mundo. Mas no norte muçulmano os homens se opõem, porque o futebol convida as donzelas à depravação. Mas terminam por aceitá-lo, porque o futebol é um pecado que pode outorgar fama e salvar a família da pobreza. Se não fosse pelo ouro que promete o futebol profissional, os sacerdotes proibiriam essas roupas indecentes impostas por um satânico esporte que deixa as mulheres estéreis, por lesão do jogo ou castigo de Alá.
Em Zanzibar e no Sudão, os irmãos varões, guardiões da honra da família, castigam com surras esta louca mania de suas irmãs que se crêem homens capazes de chutar uma bola, e que cometem o sacrilégio de descobrir o corpo. O futebol, coisa de machos, nega às mulheres campos de entretenimento e de jogo. Os homens se negam a jogar contra as mulheres. Por respeito à tradição religiosa, dizem. Pode ser. Além disso, ocorre que a cada vez que jogam, perdem.
Na Bolívia, do outro lado do mar, não há problema. As mulheres jogam futebol, nos povos do altiplano, sem desnudar suas numerosas polleras. Vestem por cima uma camiseta de cores e sem demora põem-se a fazer gols. Cada partida é uma festa. O futebol é um espaço de liberdade aberto às mulheres cheias de filhos, oprimidas pelo trabalho escravo na terra e nos teares, submetidas às freqüentes surras de seus maridos bêbados. Jogam descalças. Cada equipe triunfante recebe de prêmio uma ovelha. A equipe derrotada, também. Estas mulheres silenciosas riem às gargalhadas por toda a partida e depois seguem morrendo de rir por todo o banquete. Festejam juntas, vencedoras e vencidas. Nenhum homem se atreve a meter o nariz.
Tradução: Tiago Soares

Publicado em www.planetaportoalegre.net

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