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quinta-feira

O OUTRO LADO DA CAMISETA

Obra de história econômica reabre o debate sobre as idéias e as ações de um Che Guevara que foi muito mais que um símbolo

Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa

Como pretendia o editor italiano Giangiacomo Feltrinelli ao popularizar a mais conhecida fotografia de Ernesto Guevara de la Serna – primeiro, na capa da edição dos Diários do Che publicada logo após a sua morte na Bolívia, em outubro de 1967, depois, nos pôsteres que inundaram o mundo em maio de 1968 –, exibi-la era então uma manifestação de simpatia para com o comunismo e a revolução, ao menos sob a forma idealizada e rejuvenescida que Cuba parecia prometer.

Logo se tornou, porém, um símbolo de inconformismo adolescente, cada vez mais difícil de distinguir de um James Dean ou um Bob Marley. Por fim, virou um clichê pop aparentemente tão vazio e inofensivo quanto Mickey Mouse ou Marilyn Monroe – a ponto de decorar biquínis desfilados por Gisele Bündchen e bolsinhas de grife vendidas por US$ 4.500 a unidade. A obra de Walter Salles serviu para lembrar às novas gerações que, por trás do ícone, houve um ser muito humano. Mas dizer, como uma publicidade, que é “o filme por trás da camiseta” é propaganda um tanto enganosa, pois se detém muito antes dos atos com que esse jovem idealista – um entre muitos – tornou-se o símbolo das esperanças de uma época. Para começar, o rosto estampado nas camisetas não é o do estudante de medicina: a famosa imagem de 5 de março de 1960, registrada por Alberto “Korda” Gutiérrez, é tecnicamente a de um banqueiro – a do presidente do equivalente ao Banco Central de Cuba (esta e outras fotos estão em Cuba por Korda, editora Cosac & Nafy, recém-lançado).



No mesmo lugar em que a assinatura de Henrique Meirelles ou Arminio Fraga adornam os nossos reais, a rubrica Che garantia os pesos cubanos. Um ano depois, Guevara passaria a ocupar um cargo equivalente ao de Luiz Furlan – o de ministro das Indústrias. Que tipo de revolução esse homem pretendia? Por qual modelo de economia e sociedade lutou, tanto nas selvas quanto nas fábricas e escritórios? Che Guevara e o Debate Econômico em Cuba, do historiador e cientista político Luiz Bernardo Pericás, lembra Guevara não como garoto-propaganda da irreverência juvenil, da luta contra as injustiças ou mesmo do socialismo, mas como estadista responsável por drásticas medidas econômicas e sociais. Segundo uma anedota muito contada, inclusive pelo próprio Che, Fidel, após a vitória, distribuía os ministérios aos comandantes da guerrilha de acordo com suas qualificações profissionais. Quem é agrônomo? Eu! Pois será o ministro da Agricultura. Quem é advogado? Eu! Será o ministro da Justiça.
Heterodoxo.Guevara levou o uniforme para o gabinete do banco e para o trabalho voluntário. Sua assinatura (Che) está nas notas do período
Aí Fidel perguntou: quem aqui é economista? Guevara respondeu: Eu! Fidel, surpreso, o nomeou presidente do Banco Central – e o designado ficou ainda mais perplexo. Terminada a reunião, Fidel chamou-o em particular: – Che, sabíamos que você é médico, mas você nunca disse que também é economista. Que negócio é esse? – Economista? Mas, Fidel, eu ouvi você perguntar quem é comunista! Seria interessante saber o que outro conhecido médico pensou ter ouvido de Lula antes de aceitar o Ministério da Fazenda. Certamente, não foi a mesma coisa. Em todo caso, a piada tem um fundo de verdade. Durante os primeiros dez meses da revolução, profissionais moderados dirigiram a equipe econômica. Como Felipe Pazos, que havia presidido o Banco Central antes de Batista e também trabalhara no FMI e no Banco Mundial, mas renunciou em outubro de 1959 em protesto contra a prisão de Hubert Matos, líder guerrilheiro que se rebelara contra a infiltração comunista. Pazos saiu de cena e foi trabalhar para a Aliança para o Progresso, para o BID e para Carlos Andrés Pérez. Che o substituiu não por conhecer economia, mas por ser – como braço esquerdo de um Fidel adequadamente canhoto – o mais capaz de colocar em prática a guinada da revolução para a esquerda.

O novo presidente do Banco Central continuou a receber apenas seu soldo – não tão espartano, 440 pesos (cerca de R$ 5 mil a preços de hoje) –, enquanto mantinha algumas funções militares e a gestão de algumas indústrias já estatizadas. Instituiu o “Dia de Trabalho Voluntário”, convocando estudantes, trabalhadores e militantes a trabalhar de graça pelo país e pela revolução pelo menos 240 horas por semestre, nos domingos – e, naturalmente, não se recusou a dar o exemplo, trabalhando até mais que isso na estiva, em fundições, na fabricação de cimento ou no corte de cana. Che ouviu teóricos da Cepal e da revista marxista norte-americana Monthly Review, chocou os funcionários mais antigos ao encher o gabinete de guerrilheiros e despachar de uniforme militar, com os pés em cima da mesa, e visitou países socialistas atrás de investimentos, acordos comerciais e empréstimos. Em maio de 1960, Cuba rompeu com o FMI e repudiou a dívida externa herdada de Batista – cerca de US$ 50 milhões em títulos de 4% a 4,5% anuais – para fazer outra, de US$ 375 milhões, com os novos aliados. Cerca de 14% do PIB, mas na maior parte em condições literalmente camaradas. Uma das fatias mais grossas foi proporcionada pela China de Mao: US$ 60 milhões. Guardadas as proporções, seriam como US$ 13 bilhões para o Brasil de hoje – cerca de 40% da atual dívida com o FMI –, sem juros, com 15 anos para pagar. Eram outros tempos e expectativas.

Che admirava o desprendimento dos chineses (a ponto de ser classificado como maoísta pela CIA) e desdenhava a burocratizada URSS, que, segundo ele, retornaria ao capitalismo em algumas décadas se não mudasse de rumo. Mas até os acomodados soviéticos ainda sonhavam alto: o programa do PC soviético de 1961 previa a concretização do comunismo em 1980, com o desaparecimento do Estado, distribuição gratuita de todas as mercadorias e 20 a 25 horas semanais de trabalho, no máximo. Estabelecidas a nova inserção internacional de Cuba e a possibilidade de independência econômica, Guevara foi, em fevereiro de 1961, para o Ministério das Indústrias – dois meses da fracassada tentativa de intervenção norte-americana na Baía dos Porcos e da proclamação do caráter marxista-leninista da revolução cubana. Che defendeu e realizou a estatização total da economia cubana, mas, enquanto Moscou sugeria uma relação de interdependência e divisão do trabalho com o bloco soviético, sem ênfase na industrialização, Guevara insistiu em uma indústria razoavelmente auto-suficiente e a construiu na medida do possível. Na URSS, o reformismo de Kruchev e sucessores afastava-se do planejamento central estrito para estimular a busca do lucro pelas estatais, inclusive com incentivos materiais para trabalhadores e dirigentes. Guevara insistia em um sistema orçamentário de planejamento estatal, em incentivos puramente morais como os caminhos para um socialismo autêntico e na contínua radicalização da revolução e da criação do “homem novo” – o que levou alguns ortodoxos a rotulá-lo, paradoxalmente, de trotskista. As dificuldades foram imensas. Grande parte dos técnicos e dos engenheiros foi para Miami e os que se dispunham a ficar eram esnobados por dogmáticos militantes de base. Máquinas herdadas dos tempos pré-revolucionários eram incompatíveis com as peças e equipamentos soviéticos. Criava-se capacidade de produção de bens finais para os quais não havia matérias-primas. Faltava coordenação, comunicação e iniciativa para resolver as inúmeras dificuldades da produção.

O próprio Che considerava tais problemas muito mais graves que o bloqueio norte-americano, mas o relativo sucesso de sua empreitada econômica é atestado pela sobrevivência de Cuba ao colapso da URSS, muito depois que a sua empreitada guerrilheira fracassou no Congo e na Bolívia. O custo, porém, incluiu o atrelamento dos sindicatos ao Estado e o caráter praticamente obrigatório que o “trabalho voluntário” por vezes tomou, diluindo as fronteiras entre a nobreza da proposta original e uma mera escravidão.

Mais importante que vestir sua camiseta ou admirar o personagem é refletir sobre a sua experiência e avaliar o que nela é hoje anacrônico ou sempre foi um equívoco daquilo que merece ser retomado e revivido.


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