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sexta-feira

O medo triunfa sobre a esperança
Daniel Bensaïd*

Já durante a campanha presidencial de 2002, numa “Carta a todos os brasileiros”, Lula tinha dado uma série de garantias para sossegar os mercados, o FMI e os Estados Unidos. Na formação do governo, essas apostas foram confirmadas com a nomeação para chefe do banco central do antigo director do Banco de Boston e com a nomeação de uma equipa mais liberal que social para os ministérios da economia e das finanças. O discurso oficial é claro: primeiro, controlar a inflação e tranquilizar os mercados; só depois, na fórmula involuntariamente humorística de Lula, “começará o espectáculo do crescimento”.

Na ausência do anunciado espectáculo, a economia brasileira está em estado de asfixia. A “transição” prevista, foi remetida para as calendas gregas. O sociólogo Chico de Oliveira, adaptando o slogan eleitoral, crê já que “o medo triunfa sobre a esperança”. Para atrair capitais estrangeiros, o governo empenha-se em pagar a horas o serviço da dívida externa. Fixou taxas de juro astronómicas (acima de 26%). Só no primeiro semestre, as despesas de investimento caíram 12%. O desemprego aumenta e só na região de S. Paulo a situação do emprego é a pior desde 1995.

A reforma das pensões, adoptada em Agosto pelo parlamento e apresentada como um ataque aos privilégios, inscreve-se docilmente nas imposições do Banco Mundial em aplicação em muitos países do mundo. A reforma prolonga sete anos a duração das contribuições dos funcionários públicos, o que significa uma diminuição importante das pensões para a maioria dos assalariados, em particular para as mulheres (por causa das interrupções na carreira). Abre ainda a porta a fundos de pensões “públicos” cuja gestão será confiada a bancos privados. Estão também em estudo privatizações parciais dos serviços públicos.

Goodbye, mister Da Silva! Volta, Lula!

As primeiras consequências visíveis deste caminho desastroso são duplas. Por um lado, as reformas anunciadas estão “espectacularmente” bloqueadas. O programa “fome zero” deveria ter feito parte de um projecto social complexo, integrando reforma fiscal, política de emprego, desenvolvimento dos serviços públicos. Mas, por falta de meios, está reduzido a uma campanha de caridade pública, com péssimos resultados. De igual modo, os créditos destinados à reforma agrária, sempre anunciada como prioridade de governo, são miseráveis (ver caixa). Por outro lado, multiplicam-se os sinais de desilusão e descontentamento nos movimentos sociais. Desde logo, entre os funcionários públicos atingidos pela reforma das pensões, que se mobilizaram massivamente em Julho e Agosto e cuja manifestação invadiu o parlamento por ocasião do debate sobre as reformas. Trata-se de uma componente importante do eleitorado PT nas grandes cidades e as eleições municipais em finais de 2004 podem traduzir-se num voto de punição ao governo, se este persistir na actual orientação.

No 1º Maio, diversas personalidades (entre as quais o ex-bispo de São Paulo, expoente da Teologia da Libertação, ou o cantor Chico Buarque) dirigiram uma carta aberta ao governo para interpelá-lo sobre a questão do Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA) que cria um grande mercado latino/norte-americano, dependente dos EUA. A 30 de Maio, trinta dos noventa deputados do PT no parlamento assinaram um texto de crítica da política monetarista do banco central. A 10 de Junho, apareceu um manifesto de alarme, assinado por muitos intelectuais, na sua maioria membros ou simpatizantes do PT. A 12 de Junho, centenas de economistas publicavam uma crítica à política económica e financeira do PT. No início de Junho, o congresso da Central Única dos Trabalhadores (CUT) - de cujos 2700 delegados, 80% pertencem ao PT ou a partidos da coligação governativa - traduzia o mal-estar de numerosos responsáveis sindicais. A direcção da CUT apresentou três propostas de emenda que não foram integradas. O congresso da União Nacional de Estudantes (UNE) também testemunhou um progresso da esquerda crítica. As ocupações de terras triplicaram desde o início do ano e os confrontos entre os “sem-terra” e milícias “ruralistas” são quotidianos.

Ao mesmo tempo que se multiplicam as críticas ao governo, a popularidade de Lula atinge o seu zénite nas sondagens, com 80% de opiniões favoráveis. Uma enorme parte da população trabalhadora considera o governo como o “seu” governo. Alguns cartazes vistos nas manifestações de funcionários públicos sintetizam-no bem: “Goodbye, mister Da Silva! Volta, Lula!”. Mas a política económica e social do governo é o produto de uma escolha de fundo. Não haverá portanto uma orientação significativamente nova sem crises e rupturas no PT e no interior do governo.

O “grupo dos trinta” deputados críticos do partido dividiu-se no momento do voto parlamentar sobre as pensões: 24 resignaram-se a votar a favor, “por disciplina”, mesmo criticando o projecto; sete abstiveram-se na votação final, declarando não quererem votar nem contra o partido nem contra as suas consciências; quatro, entre os quais o membro da tendência Democracia Socialista (Quarta Internacional) Walter Pinheiro, votaram contra. Neste momento, a senadora Heloísa Helena (tendência DS) está ameaçada de expulsão do PT, bem como três deputados federais do PT que votaram contra a reforma das pensões (os abstencionistas são ameaçados de suspensão por 60 dias). No caso dos três deputados, está em curso o seu processo de adesão (depois da previsível expulsão) ao Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) (1).

Um PT blairista em versão bossanova

O sentido desta ofensiva disciplinar contra a crítica, em detrimento do pluralismo que constitui a riqueza do PT, é claro: o partido deve escolher entre o seu papel de porta-voz político dos movimentos sociais e o de correia de transmissão das medidas governamentais para a sociedade. Em jogo fica o futuro de um partido “classista”, reflexo de uma radicalização massiva das lutas sociais dos finais dos anos 70. A sua transformação em “novo PT”, espécie de terceira via blairista em versão bossanova não se fará nos próximos meses sem fortes resistências do PT histórico, tanto mais que a política do governo constitui a maior ruptura da disciplina partidária, tendo em conta as resoluções do último congresso do partido em Dezembro de 2001.

A questão brasileira ocupará portanto um lugar central nos debates da esquerda. Desde logo na América Latina: se, no país mais poderoso do sub-continente, um governo de esquerda não consegue fazer melhor que submeter-se às imposições do FMI e do Banco Mundial, que conclusões podem daí tirar os movimentos populares do Equador, da Bolívia, do Uruguai, etc? Ainda é possível impor aos credores internacionais e aos projectos da ALCA uma frente dos países devedores, com a Argentina e a Venezuela.

Mas também à escala internacional: a social-democracia, despojada de projecto, apropria-se da experiência lulista para fazer dela a sua bandeira, opondo a moderação, o passo de caracol e as alianças alargadas do “modelo brasileiro” à “fuga em frente” da Unidade Popular chilena, que teria facilitado (até provocado!) o golpe de Estado de Pinochet. Sem uma rápida e radical mudança de rota no Brasil, a desilusão será brutal.

(1) O PSTU resulta da cisão da tendência do PT Convergência Socialista (corrente trotskista identificada com o “morenismo”) em 1992, no primeiro congresso do PT, no qual foi adoptado uma regulamentação das tendências internas do PT (que a Convergência Socialista não aceitou), e antes do 8º Encontro Nacional (Junho 1993), durante o qual pela primeira vez a esquerda do PT obteve mais representantes que a corrente moderada. (de Lula) na direcção do partido. Pouco depois desta cisão, alguns militantes, (que estavam entre os mais aguerridos defensores da saída do PT), abandonaram o PSTU, deram origem à CST (Corrente Socialista dos Trabalhadores, uma pequena tendência concentrada no Rio Grande do Sul e no Pará) e regressaram ao PT. Ao longo do ano 2002, a CST dividiu-se: a parte situada no Rio Grande do Sul deu origem ao MES (Movimento de Esquerda Socialista) depois da fusão com uma corrente sindical local. As posições do MES e da CST são conhecidas através dos seus deputados federais respectivos, Luciana Genro e João Baptista Babá, ambos ameaçados de expulsão pela direcção do PT. A partir daí, o MES e a CST iniciaram a construção de um novo partido (provisoriamente chamado Partido dos Trabalhadores Socialistas), a lançar depois das previsíveis expulsões. Devido à sua orientação de se isolar em relação à esquerda do PT, o MES sofreu uma divisão em 2003. A questão de saber se o novo partido se formará com o PSTU não está resolvida. Note-se ainda que este processo envolve no máximo uns poucos milhares de militantes, enquanto o PT conta mais de 100 mil. A compreensão da profundidade da crise actual não deve conduzir à conclusão de que não é possível superá-la a partir do PT e dos múltiplos conflitos que atravessam a sociedade. Pelo contrário, ela deve permitir uma perspectiva crítica sobre as alternativas actualmente em gestação. A saída precipitada de todos os pequenos fragmentos do PT em direcção ao PSTU não dará lugar a uma alternativa. De resto, tal possibilidade não tem nada de comum com o significado histórico do PT desde a sua criação. O desafio actual é agregar as forças da esquerda do PT numa grande corrente que se dirija ao movimento social e actue na mesma direcção, contestando as orientações estratégicas do governo.

*Artigo do Daniel Bensaid no jornal Combate do PSR (seção portuguesa do Secretario Unificado - IV Internacional)

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