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segunda-feira

Bem-vindos ao Deserto de Mumbai: Durkheim e Marx contra Weber
Francisco de Oliveira

Quem chega a Mumbai, pelas descrições dos jornalistas da Carta Maior, Flávio Aguiar à frente, bem que poderia ser recebido com a frase do filme Matrix, que se tornou título do livro de Slavoj Zizek recém-publicado entre nós: “bem-vindos ao deserto do real”. Mumbai é o real inapelável, sem utopia, tão real quanto New York devastada. Uma miséria além-Brasil, quantitativamente imensa, e para a qual parece não haver remissão; a Índia renunciou à eliminação da pobreza, seguindo o que parece ser a tendência mundial.
Depois de suas três primeiras edições em Porto Alegre, o Fórum Social Mundial transferiu-se para Mumbai, a antiga Bombaim da colonização portuguesa e do longo domínio inglês na Índia. Esta não é uma mudança apenas de local: a Índia é o segundo país mais populoso do mundo, um bilhão de habitantes, precedido apenas pela China com seus 1 bilhão e 300 milhões. Com essa mudança, o FSM deu um passo decisivo para se afirmar como verdadeiramente mundial, ou pelo menos parcialmente mundial. Para evitar qualquer ufanismo apressado: isto não quer dizer que as discussões em curso concernem à enorme diversidade de uma das sociedades mais complexas do planeta.

Faltará apenas no futuro uma participação importante dos chineses, para fechar o circuito. Aqui as reticências se impõem: não está à vista uma modificação importante do ponto de vista oficial chinês, reticente para não dizer abertamente hostil, sobre a globalização e seu Fórum alternativo. Não há, na China, algo que se assemelhe ao que se chama, com certa impropriedade elástica, entre nós “sociedade civil”, que promova uma chinesização do Fórum ou uma forunização da China, e o governo chinês desde Deng Hsiao Ping é decididamente “globalizador” pro domo suo. Algum país da África também deverá estar na pauta para ser um lugar de próxima reunião do FSM.

A repetição dos temas das edições anteriores não é um defeito da reunião em curso; afinal, tratando-se da Índia, o fato de repisarem-se os temas porto-alegrenses num contexto desses deve ser visto como uma afirmação e não como esgotamento e não-renovação temática. Mas, de fato, convém fazer um balanço do que se avançou desde a primeira vez que a capital do Rio Grande sediou essa ampla utopia por um “outro mundo é possível”. Tanto do ponto de vista da globalização – usemos o termo mesmo que seja possível formular-lhe restrições -, que é seu leitmotiv de combate e agregação, quanto das proposições alternativas.

O processo de globalização segue uma marcha mais ou menos inexorável. A mundialização do capital, que é o conceito que preferem Chesnais e os que o seguem, é ao mesmo tempo mais preciso e mais restrito. Mas globalização entendida como expansão da racionalização ocidental – Max Weber, noblesse oblige – não se deteve, nem provavelmente se deterá até onde a vista alcança. É um universo em expansão na linguagem da astrofísica. A própria dificuldade de incluir a China ou de chinesizar o movimento antiglobalização já o revela. Os valores “racionais” que a forma capitalista do Ocidente criou continuam ganhando novos adeptos, formando e conquistando “corações e mentes” e moldando a forma concreta mediante os quais as sociedades fazem a conexão de sentido entre meios e fins.

Em sua alternabilidade radical, o FSM pretende ajudar a construir de fato outra “racionalidade”, substituindo o espírito do capitalismo – de novo Weber – pela solidariedade, pelos modos alternativos de vida, valorizando outras “racionalidades” mediante as quais os vários povos do mundo fazem seu cotidiano pelas suas visões cosmológicas, desentranhando a busca do lucro desses cotidianos; este é o sentido sociológico mais profundo de “religião” para Weber. Digamos que em termos das matrizes clássicas da sociologia, a obsessão alternativa do FSM é combinar Durkheim com Marx, antípodas em quase todos os sentidos e direções.

Não é um desafio qualquer. É o mesmo desafio que os socialistas de todos os tempos e todas as gerações aceitaram: o de construir outra “racionalidade”. Com uma diferença: os socialistas não queriam voltar atrás, mas avançar a partir dos patamares já alcançados pelo capitalismo. E dentro da enorme diversidade dos que fazem o movimento antiglobalização não há essa unanimidade; pelo contrário, é uma disputa entre “racionalidades”, o que para Weber já é uma dificuldade histórico-conceitual. É aqui que reside a dificuldade. Seria fácil e simples e agradável, nos termos do cepticismo pós-político que grassa, dizer que os socialistas e os mundos que provisoriamente construíram, falharam redondamente. Mas o capitalismo contemporâneo seria ininteligível sem a crítica que os socialistas fizeram, sem os mundos provisórios que ergueram como utopias alternativas, e um movimento antiglobalização como o FSM não existiria.

Reduzindo-se o alcance de um “outro mundo é possível”, pode-se constatar que a forma da expansão galáxica da globalização dos anos 90 entrou em crise; a forma neoliberal, digamos. Até mesmo porque a crítica de Porto Alegre abateu-se como “água mole em pedra dura” sobre os problemas multiplicados pela intensa desregulamentação neoliberal, as agressões ao meio ambiente, a destruição de culturas, a anulação dos Estados-nações, a exponencialização da pobreza e uma longa lista de “heranças malditas” deixadas pela vaga que teve na Mrs. Thatcher sua certidão de nascimento e na atuação das agências supranacionais – FMI e OMC – suas executoras mais implacáveis; respaldadas, evidentemente, pelo Estado norte-americano. Mas convém de novo não exagerar: mesmo correntes políticas antes abertamente antineoliberais foram convertidas a esse credo, como o governo de Luiz Inácio Lula da Silva o atesta, como a miséria impactante das ruas de Mumbai não deixa de testemunhar ante os olhos dos participantes do Fórum do “admirável mundo novo” que encontram, por enquanto, uma espécie de set de filmagem da novela de Aldous Huxley : os dalit, os “intocáveis” da Índia ali estão, são 10% da população indiana. E como o crescimento a taxas de 10% anuais da China deixa uma longa coorte de desastres ambientais e humanos hoje de difícil mensuração, tanto porque o governo chinês fecha-se a qualquer investigação, quanto porque o gozo dos capitais que encontram na China o melhor ambiente ajuda a mistificar o novo milagre da velha civilização.

Essa crise do modo neoliberal do capitalismo não é, entretanto, a certidão de óbito do sistema. Há certamente, o que se constata desde Porto Alegre, algo que unifica os hoje reunidos em Mumbai: são intensamente anticapitalistas, mas como já se anotou também, isto não os torna unidos em torno de proposições alternativas. A rota da derrota do neoliberalismo, se é que de derrota se trata, constrói-se com a agressão ao Iraque e todos os esgares prepotentes de Bush e sua canalha. Faltam muitos Mumbais ainda para dar o salto em direção não apenas ao pós-neoliberalismo, mas à rica diversidade de experiências transformadas em alternativas ao deserto do Real. Aviso ao imperialismo: já começamos.


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